Para Lumyah e Guilherme Raphael



Evaldo Macadame




Sede da policia federal.

Delegado Paulo:

– Ô Julio? Que merda foi aquela?
Julio distraído, olhava para as pernas bronzeadas da agente, que controlava microfone, câmera e polígrafo.

– Merda? Que merda? Ou melhor, qual das merdas? Tem tantas, que me sinto perdido num vendaval de bosta, seu doutor delega. O mundo fede!

– Ô meu cara, deixe de sandice e poesia. Vamos aos fatos. Você éra o monitor do cara.
– Um dos, seu doutor delega. Um dos. Todos os outros desistiram dele. Ele era um puritano e um idealista. Não era polícia. Nunca deveria ter sido aceito nos quadros.

– Pois eu discordo. E digo mais, vou descobrir qual de vocês falhou com Evaldo. Sinalizou para a agente que parou de gravar e filmar. Você não passa de um carreirista covarde, oportunista e invejoso Júlio. E eu e minha equipe, um dia vamos te enquadrar seu salafrário.

– Quê isto doutor? Eu tô dando meu sangue aqui tem mais de quinze anos. Muitas coisas saíram do controle é verdade. Mas o que fez as coisas chegarem até o ponto em que chegaram; foi mero acaso. Uma seqüência de acidentes e mal entendidos, que não poderiam ser controlados ou arquitetados, nem pelo maior gênio do crime. Tú sabe delega. Tú sabe!

– Ô, filho de uma quenga; pára de me chamar de delega, que aqui não tem nenhum classe média; e eu te manjo já faz mais de dez anos.

– Olha Paulo... Você quer saber mesmo o que eu acho que aconteceu?
– Estamos aqui é para isto. E você só sai do prédio caminhando, se abrir o bico. Eu dispenso todo mundo e te ponho eu mesmo no pau-de-arara e encho teu rabo de choque.
– Ssssss... ai... Paulo, não fala assim que eu fico apaixonado irmão.

Paulo levanta da cadeira e, sua mão enorme segurando uma lista telefônica, atinge Júlio com força suficiente para derrubar um cavalo pequeno.

– Desembucha coisa ruim, antes que eu desapareça com você, seu maldito banda podre!
– Bom, já que é assim deste jeito que você quer... – Julio dá de ombros.

Para começar, fique você sabendo que a maior parte do que aconteceu; é exclusivamente culpa sua. Você o treinou muito bem. Você o condicionou a viver sob padrões abaixo da linha da miséria mais absoluta. Você permitiu que ele tivesse acesso a línguas. Conhecimentos de mecânica, hardware, software, história, geografia política, armas, combate corpo a corpo e direito. Depois o manda recém formado, para se despersonalizar e se decompor até virar um mendigo e o deixa, seis meses assim sem nenhum contacto ou apoio; fora o que ele mesmo levou escondido consigo. A verdade, meu caro amigo Paulo; é que o moleque tinha um demónio dentro de si. E nós o abandonamos. – O rosto de Júlio se contrai numa careta de dor, que quase chega a comover Paulo.

– Recebemos notícia de que ele havia se acidentado, por outro infiltrado que não tinha nada ver; mas se lembrou do nosso garoto. Foi internado pela graça divina; em um hospital imundo. Onde ficou amarrado em um cama nos corredores urrando de dor; por pelo menos uns três dias, até uma enfermeira caridosa se ligar que ele não era louco. Apenas, tinha uma concussão na cabeça, desidratação e fome; além de ser um cara bem apessoado por baixo daquela barba suja-imunda de mendigo. O motivo da amnésia, foi a concussão confere? Desidratação e fome faziam parte do treinamento; confere? E ela o ter levado para casa, foi por ela ser uma pessoa maravilhosa e ele ser um menino lindo; confere? Quer saber mais seu viado? Ou vai largar o osso?

Paulo observa Julio, com um brilho insano no olhar.
– Bola pra frente, que este teu papo tá qualquer coisa. Vamos lá; me convença.

– Olha, seu escroto... O que Evaldo fez com uma tampinha de garrafa, um pedaço de caco de vidro e com um prego enferrujado; eu não conseguiria fazer nem com um facão. Ora, diabos nem com dois facões. Talvez, com uma lança de matar rinocerontes alguém conseguisse. Acredito, que São Jorge conseguisse.



Evaldo Macadame, desceu no aeroporto de dentro da cidade. Recém formado pela Polícia Federal; estava já em sua primeira missão. Agora a vida tinha sentido. Agora a vida seria doce. Agora recuperaria tudo o que foi perdido.

Vindo de uma família classe média da capital, Evaldo Macadame, foi testemunha da mudança de status quo acontecida nos anos oitenta e noventa que exterminou a classe média como nós a conhecíamos no país. Sua família gradualmente, foi perdendo posses e o padrão de vida pouco-à-pouco foi pro brejo. Chegou o dia em que perderam tudo. Foram banidos para as periferias. Esquecidos. A única coisa que Evaldo não perdeu, foi a cultura. Não conseguiram roubar o frutos doces que brotavam em sua mente, graças a seus estudos. Graças as boas escolas que seus pais lhe pagaram. Na periferia, continuou estudando. Desviou-se das quadrilhas, das rameiras, dos pedófilos, dos estelionatários, das doenças venéreas e do dinheiro fácil. Passou com ótima colocação e ficha limpa, nos exames da policia federal. Sua forma física era perfeita. Guerreiro urbano modelo.



Aqui estou eu, pensava Evaldo. Na cidade maravilha mutante. Passou alguns dias num apart hotel. Nadou nas praias. Comeu os melhores frutos do mar, bebeu os melhores licores. Um dia, saiu do hotel sem nenhum documento. Vestia bermudas, chinelos e camiseta. Para lá, nunca mais voltou. No terceiro dia nas ruas, já estava fedendo muito. No quinto dia; tornou-se invisível. Ficou pasmo; como as pessoas deixaram de vê-lo. No primeiro dia, ignorando as ordens recebidas; escondeu muito bem escondido e acondicionado, no esgoto próximo a entrada da favela. um cartão de crédito ouro com cobertura garantida de dez mil por doze meses. No saco, antibióticos e uma nota de cinqüenta, quase todo mendigo faz isto. As pessoas, passavam por cima de seu corpo sem pisar, com medo de sujar os pés. Olhavam em seus olhos, mas não o viam. Ele foi acostumando-se a isto. Estava preparado para tais situações. Não era isto, que iria tirá-lo de sua meta. Ele iria salvar o mundo, o mundo querendo ou não. Ele já tinha devolvido aos pais, tudo o que lhes havia sido tirado. Agora iria salvar a si mesmo e o mais importante, iria salvar o mundo. Os anjos, haviam sussurrado promessas em seu ouvido. O que Evaldo não sabia, é que todo anjo é terrível.



A missão, era colher informações sócio-económicas das comunidades. Elas formavam a grande favela. A grande favela, gerava milhões e ao mesmo tempo; morria de fome. Nomes, atos e fatos. Quem matou quem, porque, quem fazia o quê e onde. Desde o alto mar; até o topo do morro se possível. A Favela o via. Lá ele não era invisível. Era gente, um cidadão, um sofredor, um ser humano completo ou melhor; incompleto. Como todos nós. Nos primeiros dias, sempre dormia ao relento. Mas rapidamente foi adotado e depois disto; quase todo dia havia algum barraco que lhe abria as portas e permitia que dormisse longe do frio, das balas e do sereno que castigava as madrugadas. Nesta época, começou a questionar seus atos. Mas não fraquejou. Também estava preparado para isto. Disseram que, quando estivesse fragilizado, sua mente o obrigaria a revisar pontos de vista. Começou a usar entorpecentes de primeira categoria.

O acidente é que mudou tudo. Um ônibus. Um menininho. Uma mamãe sendo trolada.
Estava andando vagabundo pela calçada de uma área de feira e comércio na zona sul, próxima a favela. Um ônibus desceu lotado a ladeira em velocidade. Fazendo a curva para parar no ponto de ônibus próximo ao mendigo. Evaldo mendigo, dotado de extraordinário poder de observação, viu tudo e antecipando-se na seqüência correta; pode agir a tempo. Segundo o treinamento, isto foi uma grave quebra de protocolo.
Viu Julio, atrás de um monte de roupas dependuradas em um barraquinha, pegando por trás uma menina-mulher morena de no máximo dezesseis anos. Viu o menininho, filho dela, de três anos; andando ao Deus dará junto ao meio fio. Viu o motorista enlouquecido, com o ônibus lotado fazendo a curva em desabalada carreira vindo na direção do ponto de ônibus e o menino no meio fio em seu caminho. Sabia, que a quina da frente do ônibus avançaria uns cinqüenta centímetros para dentro da calçada. Sabia, que isto ia matar o menino. Sabia que sua mãe havia engravidado aos treze anos e precisava de dinheiro. Sabia que Julio havia colocado cinqüenta contos na mão dela e a estava enrabando sem camisinha. Sabia que Julio era doente bem sucedido no tratamento do HIV. A careta de dor da menina, a cara promíscua de Julio. O olhar inocente daquele menino. Não pensou; agiu. Salvou o menino, e o ônibus fraturou-lhe o crânio. Caiu semi-inconsciente na calçada imunda. A morena deu um grito livrou-se de Júlio, ergueu a calcinha e baixou a mini-saia jeans. Correu para o filho. Amparou o menino e Evaldo nos braços. E começou a berrar e berrar para chamarem ambulância, que aquele herói caído alí na sarjeta, tinha acabado de salvar a vida do seu amado menino.
O resgate foi feito por uma enfermeira que o levou para a própria casa. Após ser abandonado no corredor do hospital, Júlio achou que Evaldo Macadame morreria em vinte e quatro no máximo quarenta e oito horas. Mas Evaldo, ficou lá resistindo por três dias. E graças à sua beleza e cultura; após ser medicado pela enfermeira e voltar um pouco a si; recitou para ela uma poesia.

“ Das coisas que trago em minh’alma bem poucas há que me exaltem.
Pois de tudo que da vida tenho ganho; ganhado-me as tem
A vida que levo.
Porém a tantos eu tenho alegrado,
na mesma proporção em que me vejo entristecido.
É uma dor que não me mata, mas fere o que tinha morrido.
Como uma chaga que não sara, a traição de um amigo
Se vivo em constante contraste...”


O amor mais bonito, nasceu no coração de Evaldo Macadame e da enfermeira Sila. Ela era linda também. Apesar de bem magrinha de tanto trabalhar. Comia como um estivador. Tinha um corpo saudável, ávido por amar. Evaldo desmemoriado, meio febril, meio ébrio, meio alucinado descobriu este amor. Conversavam, cantavam, inventavam histórias e faziam sexo vigoroso, sublime e restaurador. Acharam dentro deles mesmos, pessoas que nunca imaginavam possível existirem. Aí, Sila foi levada por traficantes, que descobriram antes do próprio Evaldo sua identidade. Macadame pirou de vez.


A perseguição. No primeiro dia ele saiu bem vestido e barbeado pela cidade. Ouvia gritos na multidão e corria. Parecia Sila chamando-o. Pedindo socorro. Pedindo seu amor de volta. Pedindo resgate. Inconscientemente em apenas quatro dias, decompôs-se novamente. Arrumou uma peruca, vestiu-se de travéco usando roupas de Sila e subiu o morro novamente.

Seduziu meia dúzia de aviões pelos becos e, chegou a tempo no alto do morro, momentos antes de Sila virar buxa de balão ao som de funk. Traiçoeiro como uma serpente; foi eliminando os aviõezinhos com um prego enferrujado que fazia correr rasgando veias, artérias, tendões, estômagos e globos oculares. Ao chegar no alto do morro, estava muito bem armado. Tinha munição, colete, fuzil, metralhadora e pistola. Tudo do exército.

Sila, já estava dentro de sete pneus de carro encharcados de gasolina, quando ele atingiu o frente com um tiro certeiro de fuzil. Com outro tiro, arrancou o braço do bandido que segurava a tocha. Outro disparo aleijou mais um indivíduo arrancando a canela do malandro abaixo do joelho. Movia-se com rapidez de sombra em sombra. Deu voz de prisão ao resto do grupo, que achando que estava cercado, abandonou as armas e fugiu. E assim, ele livrou Sila da morte certa. Carregando-a nos braços desceu o morro. Lá no asfalto, havia muitos camburões da PM.

Alguém gritou:

– Este aí é frente! Este aí é frente!

Um tenente da PM chegou bem perto de Evaldo e disse:

– Um presente pra você!

E estourou a cabeça de Sila, com um tiro à queima roupa.


Havia um bueiro nas proximidades e, Evaldo Macadame, após desarmar com facilidade o PM, usando-o como escuro levou os dois para as profundezas dos esgotos; aonde o tenente, arrependeu-se amargamente de ter nascido. Tudo que Evaldo usou, foi apenas um caco de vidro de garrafa de cerveja.

Usando o rosto do Tenente como máscara, Evaldo emergiu mais à frente como um pesadelo. Atravessou a avenida trocando tiros com a polícia. Atirou numa porrada de motoristas e isto lhe permitiu que escapasse. Num sinal fechado, estourou o vidro da janela de uma Nissan e arrancou pelos cabelos a madame que encontrava-se lá dentro. Saiu cortando a cidade a 160 Km por hora. Mais pra frente, trocou de carro, abatendo o motorista com tiro de fuzil. Seguiu adiante. Trocou novamente de carro e este motorista sobreviveu, apenas por estar vestido de branco. E mais uma vez. E de novo. Até que bem longe da confusão, internou-se novamente nos esgotos, onde encontrou-se com o diabo.


Usava um isqueiro bic para locomover-se nas trevas fedidas do esgoto. Ratazanas o atacavam e ele as abatia com as mãos; ou a dentadas. Precisava guardar munição. Foi quando ouviu o chamado.
– Elessssss... Elessssssss... meu amadoooo Evaldo. Eles são o cú do mundo meu filho. Lá em cima não tem amorrrrrrr meu filho. Elessss destruíram sua vida. Destruíram tuuuua família. Mataram o mais puuuuuro amor. Meu filho... Elaaa está bem. Elaaa está comigo e está bem. Eu entro em você eeee te mostro. Eu entro em você e te levoooo. Eu entro em você e você me dá sua alma. Eu entro em você e te redimo. Eu entro em você e te redimo. Eu entro em você e te salvo. Eu entro em você e te vingooooooo.

Evaldo sem pensar duas vezes diz:

– Vém! Pode pegar. É tudo teu. Me leva meu anjo. Por favor, me leve meu anjo. Agora!

O que emergiu daqueles esgotos, não era mais Evaldo Macadame.

Evaldo Macadame, limpou a cidade naquela noite e em outras. Invadiu quartéis. Liderou multidões. Mas o mundo, pouco mudou.

Ao fim de sua peleja, já muito ferido, Evaldo olhou para o diabo e disse:

– Agora pode me levar.

O anjo respondeu:

Quem disse que eu sou o diabo? Sou arcanjo Gabriel. Agora, você vem em meus braços. Vou te levar de corpo e alma para o céu.


Delegado Paulo.

Paulo após a saída de Julio, diz para a agente:

– Vai com ele pra casa dele. Usa duas camisinhas. Mate-o durante o sono. Faça parecer acidente.




Fim.