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domingo, 9 de junho de 2013

Arkansas







Esta é uma obra de ficção baseada na livre criação artística e sem nenhum compromisso com a realidade



 


 







por: gu1le

Arkansas, 1960



Existe uma nuvem que a cada cinco anos, descansa por três dias sobre um milharal a leste do Arkansas, perto do Tenesse. Uma massa densa, realmente grande. Parece um enorme iceberg. Não estamos falando aqui, apenas da parte que fica fora d'água e sim, de uma totalidade de iceberg. Sua base que quase chega a tocar o milharal é estreita. Um pouco mais larga que o milharal uns duzentos metros. O milharal compreende um terreno de dois por dois quilômetros, e a nuvem vai ganhando corpo quando chega a alturas mais elevadas. A três quartos antes de chegar ao topo ela atinge sua largura máxima, depois vai afinando-se. Por isto, lembra icebergs. A maior parte de um iceberg, não se pode ver, pois está submersa.
Esta dita nuvem, conhecida dos moradores da região que são muito apegados a ela; possui ciclos. Os moradores não a tratam como apenas uma nuvem, coisa que a maioria de vós acharia adequado. Pelo ponto de vista deles, ela é um totem, um monumento. Eles vinculam os estágios da vida desde o nascimento até a morte, a ela. É possível, que tratem esta nuvem como um Deus. A interpretam pelo menos, como se fosse uma promessa. Uma promessa duvidosa de boa safra, saúde, fertilidade. Prosperidade. Desde que, sejam cumpridos os rituais adequados. Desde que, exista o distanciamento correto. Respeito. Resguardo.
Mas, como tudo de errado tem de um dia acontecer e acontece mesmo; a nuvem foi exposta. Isto foi o início de maus tempos. A nuvem virou uma febre. O causador deste furor americano foi um humilde repórter do Tenesse, maldito seja. Ele conseguiu vender uma reportagem sobre o fenômeno, três meses antes do próximo ciclo. Uma pequenina matéria repleta de boatos, mas, com uma excelente montagem fotográfica em preto e branco para os padrões da época. Foi impressa nas páginas do The Examiner, de San Francisco.
Eram meados de 1960. Anos turbulentos. Época de assassinato, contracultura, drogas, desordem, escândalos, Guerra fria, Vietnam.
Tudo isto, testemunhado pelo olho frio azul do céu, rasgado pelos aviões à jato. Concordes supersônicos.
Cientistas, velhos beatniks, pré-ufólogos, os primeiros hippies e secretários de capitães de indústria; vieram em caravana testemunhar o espetáculo. Vieram desvendar o mistério. O mundo é um lugar a ser decifrado. Queriam encontrar Deus, fazer fortuna, fama, ir embora de nosso planeta e curarem-se de doenças. Para eles na época, o mundo apesar de hermético; despertava imenso desejo de compreensão. Esperavam que o mundo apos análise se apresentasse razoável e racional. O fenômeno em questão significava uma resposta.
Capitães de indústria, publicitários, geólogos, biólogos e historiadores; vieram analisar o que era, o que acontece, o que aconteceu e o que acontecerá. Talvez o local pudesse tornar-se um ponto turístico lucrativo, uma bolsa em Yale ou coisas que Darwin nunca seria capaz de imaginar.
Loucos de entusiasmo, embrenharam-se pela noite do milharal mergulhado em nuvens. Aspiravam seus perfumes, tocavam flautas, violas e acordeões. Ciganos imersos em brumas. Analisavam a pressão atmosférica "in loco". Era a maior curtição. Passavam a madrugada com escaravelhos, sendo picados por mosquitos, centopéias, infestavam-se de formigas e piolhos, guaxinins roubavam seus pertences, encontravam cobras escondidas em suas botas, escorpiões em seus cabelos e aranhas em suas costas.
Nunca ninguém sumiu nem morreu. Claro, que houve casos de urticária, alergias em geral, cegueira temporária, alucinações, envenenamentos, perdas e danos. Um dedão do pé ali, uma mão aqui, um braço acolá... Mas morrer, não morreu ninguém. Tudo tinha uma explicação coerente. Lógica. Mas, verdade é: Levaram tanto chute na bunda, que ela foi parar no alto das costas.
E aí tudo acabou.
Todos deram com os burros n'água, quando um jovem acadêmico da universidade da região, descobriu e provou que o tal milagre, a tal entidade flutuante, era apenas um fenômeno climático comum. O subsolo da região, estava sobre uma falha geológica. Esta falha geológica emitia calor absurdo, possuindo em seu caldo vermelho centenas de elementos químicos raros. Tóxicos. E, para fechar com chave de ouro; encontrava-se com um frio rio subterrâneo sazonal. Isto elucidava tudo. Os insetos, as alergias, as alucinações e aquela reles nuvem, que não era nuvem. Explicava que seu retorno "relativo" - Outra máxima de Mark Atkins o Einstein do Arkansas - de cinco em cinco anos, nunca existiu. As águas escaldantes, sob grande pressão com alto teor de enxofre entre outras substâncias tóxicas, em quantidades não fatais - Como o jovem Mark Atkins, o cientista mais famoso da região disse - não jorravam como gêiseres. Brotavam sim, de centenas de pontinhos vindos do subsolo, por vários quilômetros na região ao redor.
Arkansas é uma amplidão freqüentemente perturbada por ventos e tornados; mas em determinada época do ano, há sempre ao menos uma quinzena em que nenhuma folha se move; e o calor deixa a todos esgotados. Inversões atmosféricas, provadas e comprovadas no estado do Arkansas já na década de 30.
E foi o fim. A bolha estourou. O sonho acabou, e todos os estrangeiros, foram embora para nunca mais voltar.
Ou, como diz o amável padre Abe:
- We kick the living shit out of these mother fuckers!
O que deixa Mark Atkins surpreso até hoje, é como todos aqueles grandes homens tão viajados, ricos e estudados puderam acreditar em tamanha asneira.
Tudo bem, que o trabalho foi realizado em conjunto com o pessoal da região. Isto é: Umas duas mil e quinhentas pessoas corroboraram para o sucesso do engodo de Mark. Até o velho padre Abe A. Burke, entrou na jogada. Importante mesmo para todos na região; era a manutenção do status quo.
Mark poderia voltar a arar e semear os campos, incluindo o território do milho, junto com tantos outros rapazes e garotas; do mesmo modo que fizeram seus pais, e os pais de seus pais e assim por diante, até chegar aos primeiros indígenas que por lá semeavam trigo selvagem. Sempre no mesmo lugar, geração após geração.
Mark achava que a Promessa, A Boa Nova ou seja, o Deus do milho não gostava de trigo, e por isto, os índios da região se deram tão mal.
Este Deus, que outros chamam de Titã, irradia luzes. Algumas vezes, quando a noite está para cair, pode-se ver fantásticas luzes verde néon. Sua imponência, muda conforme a revolução de sua massa. Isto faz com que uma estranha sombra, entre preta e cinza, crie forma. Forma pertencente a outros mundos. Onírica. Bela. Totalmente alienígena. Emite apenas um único som profundo, enorme, avassalador que rasga os céus. Segurança.
Ana Atkins ou simplesmente An, é irmã de Mark Atkins e os dois não poderiam ser mais diferentes. Enquanto Mark era devoto e entendia os procedimentos ritualísticos que, em sua opinião, garantiam prosperidade da região; An era só curiosidade e sonhos vaporosos de amor.
Há aproximadamente cinco anos atrás, antes da febre e dos estrangeiros, An presenciou um fenômeno no milharal coberto de nuvens. Achou que ia morrer no instante em eu me aproximei. Eu era todo trevas. Uma forma estranha que se aproximava lentamente. O medo a deixou desorientada e sem fôlego olhando para os lados. Ela tentou achar seu norte, mas estava perdida...
Quando consegui livrá-la das brumas do milharal, An não contou até dez. Foi direto procurar apoio em seu irmão, Mark.
An:
- Mark, estava lá em comunhão com o milharal. Senti frio, tive medo. Mal estar. A sensação de mal-estar se intensificou em meu estômago, começou a espalhar-se pelo resto do meu corpo. Eu vi a mais espessa escuridão aproximando-se. Eu fiquei imóvel, quietinha, enquanto isto se aproximava. Um raio de luz néon, desceu lentamente da nuvem como uma cascata em câmera lenta nos iluminando e de repente a treva sumiu e um homem surgiu. Acho que era homem, talvez, nem sei. Eu engoli um gemido Mark, e pensei que iria morrer naquele instante.
Em resposta, Mark recitou antiga liturgia ensinada pelo pai:
"Eu sou um cavaleiro da tempestade. No limite da realidade, exulto na viração. Prolifero em planícies varridas pelos vendavais de granizo. Danço pelas tormentas. Alcanço a paz no absoluto azul frio dos céus. Já fui iluminado por milhares de sóis. Conheço centenas de mundos. Agora, ocupo este campo. Estou aqui, para evitar que crias desavisadas caiam em abismos. Eu apanho o Trigo o Milho e o Centeio. Eu sou o cavaleiro marginal."
- Você teve sorte An. - diz Mark - Não devia ter se aventurado por lá sozinha, sem autorização, sem avisar a ninguém.
- Se eu avisa-se, não me deixariam. Eu quero saber. Tenho de saber. Nasci para saber.
- Saber o quê, An?
- Ora, tudo.
- Tudo? - sorri Mark.
Bom... - diz An insegura. - Nada, também.
Mark a observa com uma fúria serena. Mark tinha dezesseis anos.
- An, ah pequena. - Mark a abraça. An, tinha apenas quatorze anos nesta época anterior ao repórter. - Você sabe que ali existem coisas que escapam a nossa compreensão. Você sabe que lá atuam poderes. Sabe também, que é lá que depositamos nossa fé. Só vai para os campos quem é chamado. Existem pessoas que entraram no milharal, dizia o pai do nosso pai, e saíram exauridas. Como se tivessem deitado suas almas e suas energias no campo de milho. Outros, nunca mais voltaram. E outras...
- Sim, eu sei Mark. E outros, voltaram transformadas em outras coisas... - completou An arrepiada, de olhos muito arregalados e brilhantes - mas, e se eu fui chamada?
- Outras pessoas da comunidade teriam sentido o seu chamado. Você teria sido posta em quarentena até o fim da estação. Estaria em segurança, An.
- Mark, fui até lá por que quero descobrir.
- É. Parece que quer mesmo. Você ainda sonha com o azul, não é Annie?
An ficou vermelha.
- Eu não sonho mais com o azul. Não sou mais uma criancinha, assim como não faço mais xixi na cama. Já floresci. - disse ela empinando o nariz.
- Engraçado... - provoca Mark.
- Engraçado, o quê?
- Eu parei de sonhar com o azul, há apenas um ano atrás. Sonhos azuis são crianças desaparecidas, An. Terei de relatar o seu caso ao conselho. E se algo não autorizado houvesse vindo junto com você mana? E se algo a usasse para escapar?
- Eu sei, Mark, meu irmão.
Apos este caso, anos se passaram. Ana recebeu sua punição e a cumpriu. Seis meses de Serviço comunitário, e mais seis meses de aulas da disciplina, Conhecendo as Estações, com padre Abe.
Eles continuaram a viver. Jovens ativos. Estudavam, trabalhavam, brincavam, amavam e participavam da vida farta, sadia e festiva da próspera comunidade.
Os problemas, só viriam anos depois com o advento do repórter do Tenesse, quando algumas coisas por distração minha, escaparam do território. Meu território de milharal.
Próximo ao território de milharal, oito quilômetros de distância, existe uma cidadezinha quase deserta chamada, Caçador Dascopen por uns e Trindade: A Terra dos Três dias (3T), pelos moradores temporários.
A cidade perene, Beleville, localiza-se mais para o sul, a trezentos quilômetros de 3T e é cheia de vida. Possui seis mil habitantes. Mulheres, crianças e bebês vivem felizes em uma cidade modelo, farta de atividades, empregos, alimentos e todas as delícias da modernidade de 1960. Já 3T, cidade sazonal, possui um belo lago artificial, que faz parte de sua modesta subestação de energia e abastecimento. Eletrificadas, asfaltadas e saneadas as duas são; mas 3T, possui apenas quinhentos moradores fixos. Os moradores de 3T são em sua maioria, caçadores, estudantes e teólogos do território.
Umas cento e trinta casas distribuídas em lotes de vinte e cinco por vinte e cinco metros, ocupam quinze quadras de cem por cem metros, mais ou menos. Dois mercadinhos, quatro lojas de armas. Dois grandes cemitérios um quilômetro depois do fim da parte oeste da cidade, um de trezentos anos aproximadamente, e outro de tempo indeterminado muito antigo (poderia dizer que eram então três cidades). Uma farmácia, uma oficina, um hospitalzinho muito bem feito e sempre equipado para o que desse e viesse. Uma escola com teatro, quadra de esportes e piscina aquecida. Um posto de gasolina e no final da cidade; um quilometro antes dos cemitérios (lado oeste), pode-se ver o imponente, burocrático e maciço prédio antigo feito de pedra. Adornado por gárgulas também de pedra que é chamado atualmente, Administração.
Dividida em seções, Administração é o ponto zero. Uma fortaleza que em parte, funciona como tribunal, outra como delegacia, outra como prisão, sendo sua última parte, o centro de pesquisas esotérica.
Terminando a composição desta pequenina cidade, no alto da colina leste, à entrada da cidade, próximo ao hospital, uma orgulhosa igrejinha de altos campanários; projeta-se contra o suave, limpo e perfumado sol nascente. Tudo construído sob orientação do conselho. Formado pelos mais sábios membros do Território de Milho. Como tentei dizer-lhes no início, dinheiro nunca foi problema para quem nasceu à sombra próspera da Promessa.
A nuvem tem muito mais a oferecer. Alivia os que tem sede, e eles vem de todas as partes para dela beber. Não existem palavras que possam definir Titã. O mais próximo que consigo chegar de uma tênue e remota definição, é o fato de que grande parte de Titã é composta de poeira estelar e energias magnéticas vivas. Poeira estelar consciente. Você é daqueles que acha que tudo que flutua nos céus é apenas nuvem e balão? Está equivocado se acredita. Os bebedores, são viciados em energias magnéticas, poeira estelar e lugares eternos. Eles chegam secos, usando as mais variadas formas. As mais variadas formas. Alguns, transformam-se pelo caminho e chegam pedras. Outros buscando Titã, sua meta, sofrem também mutação e quando chegam ao território estão insectas. Certos tipos, alojam-se nos grãos de milho. Uns, cá chegam apenas vapores e umedecem as palhas do milho. E outros, quando conseguem aqui chegar - poucos - são o que sempre foram. Garras, presas, olhos vermelhos. Vampiros, lobos, monstros, fadas, sombras. Por Titã, já tivemos aqui até sereias.
Procuro sempre despachar todos. É só saírem da linha, que eu os destruo com muito gosto. Odeio todos eles. Odeio mais ainda os mortos, os fedidos, virulentos, avaros, gulosos e malignos vampiros filhos de hereges. Também odeio lobos, magos, fantasmas, semideuses, anjos e demônios. Malditos sejam.
Por que Titã deixa todos beberem? Porque, A Promessa, permite que estes seres sejam mais do que já são? Por que deixa, que eles se renovem? Provavelmente, desejo de Gaia. Não me meto nisto.
A Promessa, oferece santuário sim. Dá de beber a todos que a ela chegam sim. Só que chegar a ela, não é nada fácil. Quase impossível. Mais fácil ganhar na loteria. Difícil também é sair. Titã não deixa. Titã protege o umbigo de Gaia, pois Pelo seu umbigo Gaia a nutre. Titã mantém seu formigueiro saudável, seu povo. E quando parte, Titã arrasta todos os males consigo, imagine pelos ares a guerra lá dentro, um verdadeiro balaio de gato. Deposita alguns, do outro lado do mundo nos desertos ou em fossas oceânicas. Outros nos pólos, e os piores abandona no lado escuro da lua. Mesmo assim, alguns conseguem voltar. Ta bom admito, alguns a gente come. Alguns são decompostos e absorvidos, quando Titã deseja fabricar tempestades geniais. E eu? Eu adoro milho. Adoro pipoca. Farinha de milho. Doces de milho. Bolos de milho. Cigarros de milho e Bourbon de milho. Pamonha.
A única coisa que eu sei, é Titã.
Titã, apesar de não ser a única, é a primeira forma de vida. Seres como ela, são a própria vida. E está escrito, que será também a última quando um dia tudo chegar ao fim. A forma real da nuvem, seus olhos não são capazes de enxergar. Muitos filtros cobrem seus olhares. Amo An, amo Mark, amo todo o povo que cultiva A Promessa. Um dia, fui amigo de seus pais, seus avós. Um dia, serei amigo de seus filhos. É minha honra, meu dever e minha salvação.
Não sou o primeiro caçador de Titã. Outros já falharam e foram reintegrados a nuvem ou foram redirecionados a outros sistemas. Dependeu apenas de suas atitudes. Mas eu não. Vou ficar. Gosto disto. Nasci para guerra. Nasci para matar.
Abençoados sejam.


Arkansas 2013
Já não sou mais um jovem. Eh, eh! Diabos por isto, é que estou rabiscando este caderno. Faz muito tempo que a primavera acabou-se para mim. A primavera enganou-me, e por isto, em nome das ilusões; cheguei à conclusão, que é hora de escrever minhas memórias.
Chamam-me de Mark Atkins, nasci em 1949 no grande estado do Arkansas. Tenho sessenta e quatro anos e acham que sou um homem sagrado. Sou rico, podre de rico. Assim como todos os que me rodeiam. Não ligo para dinheiro, nunca liguei.
Se há algo mais belo, sagrado e poderoso que Titã, desconheço. Vivo a vida humildemente. Amo meus sobrinhos. Adoro minhas calças velhas desfiadas e meus chinelos de coelhinho cinza em frangalhos. Não aro a terra, com nossos imensos tratores, se não estiver calçando meus chinelos de coelhinho cinza. Só aro a terra no escuro da noite. Por quê? Porque sou um monstro. Que tal?
Tudo começou com um repórter do Tenesse, que apodreça no inferno. Seis vampiros escaparam do território. Seis! Uma calamidade. O Deus estava ocupado demais velando por outras almas, por isto, seis fedidos romperam a barreira sonora e magnética de Titã. Eu e Abe, testemunhamos tudo, usando os telescópios do posto de observação no alto do campanário da igreja. Seis longos sulcos cavados nas nuvens rasteiras do milharal. As nuvens distendiam-se como tentáculos, procurando agarrá-los sem conseguir. Partiram simultaneamente para todos os lados. Um, escapou para o sul, indo parar na cidade 3T. Dois, rumaram para oeste, depois sudoeste, direto pros cemitérios. Um, se mandou pro leste buscando a rodovia, foi parar no Tenesse. E o último dos seis, evadiu-se pro o norte embrenhando-se nas matas. Todos revigorados, energizados, cheios de maldade e sedentos de sangue. Maldição. Eu podia ter nascido em 2013 em vez de nos anos quarenta. Agora, ta tudo tão gostozinho, tudo tão GPS. Queria ver vocês se virarem em 1965, fedelhos!
Quando era jovem eu era sério. Oh, Titã, como eu era sério. Moralmente, mortalmente sério. Solene, como um bode embarcado. Mas, como vocês com o tempo descobrirão (assim espero), a vida engana. Não podemos controlar o que sentimos ou escolhemos; apenas nossos atos são passíveis de controle. Podemos controlar nossas ações, nossas escolhas não. De forma alguma. Por isto, ainda estou aqui. As coisas, são como tem de ser. Deixem-me lhes falar agora, sobre o caçador e a caçada.
Um segundo apos assistirmos a fuga dos seis, Abe estava ao telefone tentando falar desesperadamente com Beleville. E eu, tinha acabado de cair e rolar os últimos dez ou vinte degraus da torre do campanário. Machucado, começava a capengar na direção da caminhonete de Abe. Estava indo para o território. Ao sentar no banco da caminhonete, lembrei-me que Abe não me dera à chave. Abe, sempre quis me ensinar a fazer ligação direta, eu sempre disse que era besteira. Fiz bem em não aprender. Esta foi minha sorte. Demorou o quê? Uns cinco, dez minutos e Abe reuniu vários homens, caçadores e estudantes todos treinados. Quando estávamos na saída da cidade, foi decidido que não iríamos pela estrada que era sinuosa. A estrada, evitava todos os campos férteis, por isto era sinuosa. Cortaríamos em linha reta, os oito quilômetros até o milharal, pelos campos planos e perfeitamente arados da nossa terra. Nunca chegamos ao território.
Éramos uma equipe de fé. Cinco veículos, dois Ford F100 dirigidos por Jack e Buddy, dois Bel Air Vespa dirigidos por Joan e Mary, nossa cavalaria ligeira. E, o lerdo Chevrolet D60 de Abe. Abençoados sejam os D60. Cinco veículos, quatro amigos em cada veículo, armados até os dentes com revólveres espingardas e carabinas, espadas e porretes. Um total de vinte homens. Lembro que meu primo Alvim portava o lança-chamas e, estava empoleirado na carroceria do Ford de Buddy.
Dois quilômetros adiante, em nossa trilha objetiva, avistamos usando nossos grandes faróis e holofotes o primeiro fedido. Jamais havíamos visto um na vida real, apenas em xilogravuras, em livros.
Joan a bela, urrou acelerando loucamente o seu Vespa amarelo pela esquerda, enquanto os três rapazes posicionavam-se para abrir fogo colocando seus troncos para fora da janela. Mary, pilotando o outro Bell Air Vespa, geralmente prudente, desta vez lançou-se destemida ao ataque pela direita. Seus três caçadores, também posicionados nas bordas de suas janelas.
Toda vez que relembro os acontecimentos do início daquela noite infernal, o pranto rola. Santa ingenuidade.
A criatura, correu em direção a Vespa de Mary a uma velocidade estonteante, sendo estourada por tiros de uma escopeta, sacudida por disparos certeiros de carabinas e a uns dez metros do carro saltou. Varreu o lindo Vespa de Mary como se fosse feito de isopor, e tudo o que existia acima do volante, foi levado pelo seu abraço monstruoso. Joan aproximava-se em um longo movimento elíptico junto com seus caçadores. Agora estavam em silêncio. Jack e Buddy ainda estavam longe o suficiente para ajudar em nada, mas aproximavam-se como se o diabo estive-se mordendo seus calcanhares. Eu gritava, inconformado com Abe, para ir mais depressa. Assistia a tudo, com um binóculo de observar pássaros.
Quando o vampiro saltou sobre Joan, não foi tão feliz como foi com Mary. Joan, o rebateu com um violento cavalo de pau. Salvou a si mesma e seu caçador do banco da frente. Só depois, percebeu que estavam sem a parte traseira do Bell Air. Havia perdido seus dois caçadores do banco traseiro. Joan e seu parceiro, ainda em alta velocidade, capotaram várias vezes, comendo terra e sendo esmagados pelo restante da lataria do veículo que, ao imobilizar-se, rompeu em chamas iluminando e afastando o vampiro, que já se aproximava para lhes beber da carniça.
Imagino, como se sentiu Jack naquele momento. Joan, era sua filha. Rezei para que fosse o suficiente a ele saber, que agora sua filhinha, estava em Titã. Não houve um segundo sequer para lágrimas. Vampiros, são pragas impiedosas, não param nunca. Perpetuamente ativos, suas chamas só se extinguem, quando totalmente aniquilados. Buddy, que nunca se fazia de rogado, aproximou-se swingando livremente seu Ford em velocidade alta, mas controlada. Primo Alvin, exímio malabarista, lançando rajadas de fogo com o lança-chamas, equilibrava-se tão bem na carroceria da caminhonete de Buddy que parecia estar grudado. Os outros dois caçadores de Buddy mandavam chumbo grosso na direção do fedido maldito.
Curiosamente, desta vez, o guloso, manteve-se imóvel. Com certeza, era algum ardil. Compreenda. Por favor. Quando estamos na guerra, dedicados a um movimento de ataque, existe sempre um ponto onde não há mais possibilidade de retorno. Todos nós já estávamos milhas além de qualquer salvação. Eu, Mark Atkins, posso lhes dizer o dia do meu verdadeiro nascimento. Foi na barriga trevosa e maldita daquela noite lacrimosa, fedendo a urina, a fúria, sangue, medo e fumaça de gasolina gritando desesperado e entristecido o nome dos meus irmãos de armas perdidos para sempre. Nunca mais os encontrarei.
Quando Buddy chegou perto o suficiente, o vampiro simplesmente sacou do solo, do fundo arado da nossa terra; uma enorme pedra de granito. Setecentos quilos de pedregulho, por Titã. Para a peste, parecia pesar somente uns vinte quilos. Ele a plantou bem á sua frente, depois apoiou suas costas no granito frio abrindo os braços. Buddy e seu Ford chocaram-se contra este paredão a cento e dez quilômetros por hora.
O peste sorriu, enquanto o granito explodia às suas costas e o Ford, junto com Buddy e sua equipe, passava invertido voando sobre sua cabeça. Alvim, foi projetado a uma altura impressionante. Ainda segurava seu lança chamas e naquele momento derradeiro...
Ah, Alvin... Nunca mais conheci outra pessoa como você, meu amado primo. Queria tanto ser capaz de morrer, para juntar-me a todos em Titã.
Naquele derradeiro momento, Alvin, ainda tentava queimar o vampiro. E assim sendo, Alvin, vítima de suas nobres intenções, como um Ícarus explodiu incendiado numa fornalha napalm, lá bem no alto dos céus.
A criatura, de imediato, voltou-se para Jack que estava estacionado a vinte metros de onde o fedido, situava-se. Ele e toda sua equipe haviam apeado da caminhonete. Nada mais de armas de fogo. Apenas porretes e espadas japonesas de prata.
Finalmente, nós chegávamos pessoalmente ao combate. Juntamo-nos a Jack e sua equipe. Nos olhos do grande Jack e seus caçadores, existia apenas uma fúria de tempestade e, uma fria raiva assassina. Nascemos para isto.
A besta nos encarava com desdém. Jack pai de Joan, padre Abe, eu Mark Atkins, caçador Julius, caçador Rúfus e caçador Andrew, éramos os únicos que restavam. Havíamos perdido, Mary e seus três caçadores, Joan e seus três caçadores, Buddy e sua respectiva equipe de três caçadores, entre os quais, estava o grande e honrado Alvin; meu primo valente. Quatorze vidas doadas á causa. Não se engane. Eu não me iludo. Se eles possuíssem dez vidas a mais, teriam gasto cada uma delas na gloriosa luta furiosa, contra as forças do mal. Contra as forças que são contra a vida. Contra as forças desestabilizadoras, entrópicas que desejam o silêncio e querem apagar a luz das estrelas. Forças que querem chafurdar nas cinzas fumegantes de mundos destruídos.
Em ritual de desligamento e despedida, formação de meia-lua, cruzamos nossas espadas de prata e erguemos nossos porretes bem altos no ar noturno, saturado de fumaça pelos fogos da nossa guerra, encarando o diabo nos olhos.
Ainda hoje, não compreendo como Abe e eu conseguimos sobreviver em detrimento de todos os outros. Abe, assim como eu, recorda-se apenas de um longo blur. Um borrão manchado de luzes, sangue, gritos. Ossos partindo-se. Sei, que atacamos lentamente, em formação de célula. Íamos englobar o maldito. Quando Jack entrou no círculo, o espaço deixado por ele foi imediatamente ocupado por Rúfus, e o círculo diminuiu um pouquinho. Enquanto Jack atacava pela frente, Andrew silenciosamente destacou-se também da formação às costas do vampiro. Jack correu para o fedido, que saltou em sua direção com os pés cheios de garras mirando seu plexo solar. Jack pareceu tropeçar e lançado ao solo, conseguiu abrir profundo corte com sua espada de prata na virilha cabeluda do vamp. Andrew que não desperdiçou a oportunidade, enquanto o fedido arrancava a espinha dorsal de Jack que estava de costas com a cara enfiada no pó da nossa arena, amputou-lhe o braço direito, sendo imediatamente decapitado pelo braço esquerdo da coisa. Aí, todos nos lançamos ao ataque simultaneamente. Julius, Abe, Rúfus e eu. O maldito não podia chegar até 3T. E não chegou. Se é que apenas a cabeça conta. O abatemos com requintes de crueldade, dos quais me orgulho e ao mesmo tempo me envergonham. Julius, antes de morrer amparando Rúfus, agradeceu a Abe pelo golpe fatal que apagou a chama da peste. Era apenas, um sorriso sanguinolento e um intenso e radiante brilho nos olhos.
Para falar a verdade, sei por que Abe e eu escapamos. Por que os outros deram a vida, para que ao menos um ou dois de nós, pudesse abater aquela chaga que ameaçava espalhar-se pela terra.


O Eremita Barnabé

Arkansas 1960

Meados de 1960, Barnabé vivia nas colinas repletas de árvores, a norte do território do milho. Sua história deve ser contada. E é nossa intenção contá-la.
Já há muitos anos, Barnabé vivia isolado. Sargento fuzileiro, sobrevivente da segunda guerra mundial, (1939-1945) não foi para a guerra do Vietnam. Para o exército, um desertor. Para nós, um herói. Voltou pra gente, muito diferente do que era. Transtornado. Seu isolamento precede o auto-exílio a que se impôs quando, mergulhou na mata selvagem que ficava à norte do milharal, para nunca mais voltar. Foi um dos nossos melhores estudantes de teologia. Excelente atleta. Professor inspirado, amigo leal. Perito inigualável, no manejo do arco e da clava.
Descendente direto da cruza, entre primeiros colonizadores com os xamãns e feiticeiras indígenas que, antes de extinguirem-se, transmitiram-nos o legado de Titã (abençoados sejam eternamente). Pertencia a mais nobre família do território. A família, Natchez-Chickasaw.
Quando se internou nas matas, já estava praticamente cego. Estilhaços de granada. Dano cerebral. Nunca se abriu conosco a respeito da guerra que participou. Mas sabemos de seus feitos, pelos muitos sobreviventes que retornaram ao seio de suas famílias em Beleville e 3T, graças às atitudes tomadas por Barnabé. Obtinha tudo o que precisava para subsistência da mata. O que não impedia, que fossemos visitá-lo. Alguém, sempre ia a cada lua minguante, levando mantimentos e medicamentos. Muitas vezes, eram viagens perdidas. Sabíamos que ele estava lá, mas, só conseguíamos localizá-lo quando ele nos permitia.
Com quarenta e dois anos, vivia sozinho naquelas matas, há quatorze anos mais ou menos. Mas, não estaria só por mais muito tempo. Não adianta correr do destino. Pelo menos, para Barnabé, isto foi impossível. Seu irmão das sombras. Negro monstro. Seu pesadelo. Virótico, viciado, decadente. Feio e louco, já havia se evadido do território do milharal e, dirigia-se a passos céleres para aconchegar-se em seu regaço.
Barnabé, antes que tudo acontecesse, já o pressentia. No alto de um pinheiro, escondido em seus círculos concêntricos, estava mergulhado em um mundo verde. A floresta estava úmida e as negras colinas, mergulhadas em brancas nuvens assim como seus olhos.
"Ah irmão, mesmo não te vendo, eu te vigio." - pensava Barny. Usava como sobretudo, um poncho de chuva verde-oliva com gorro. Em suas mãos calejadas, segurava um grande arco de freixo. Sua vida era um delírio. Dias antes, havia sonhado com a mãe.
Estava percorrendo, pela milésima vez, campos destruídos. A terra arrasada e podre, cheirava a pólvora, doença, desespero. Crateras imensas, abertas pelas bombas. Emaranhados de cercas de arame farpado, agarravam-se a cadáveres de soldados trucidados, inertes. Haviam chamas pelo chão. Poças de gordura humana alimentavam o fogo. Vivia sob um rubro céu vermelho, num eterno batismo de fogo, no qual o único som era o grito trovejante da alta batalha. Observava todo aquele sofrimento, companheiros feridos de morte, chamavam-lhe pelo nome. Barnabé! Barnabé! Barnabé! Quando tropeçou e, acabou rolando para dentro de uma enorme cratera. E foi neste fosso profundo, que encontrou-se com sua mãe.
Ela, emergiu da lama e do sebo derretido dos corpos, que ainda ferviam ao redor daquela imensa cova. Primeiro ergueram-se seus ossos, depois, seu corpo foi moldando-se ao redor deles nervo a nervo, veia a veia em grande velocidade e por fim, ela estava lá.
Nua, lindamente nua. Seu brilhante cabelo negro e escorrido, descia até a altura dos quadris amplos. Sua cintura fina, seios pequenos e empinados, um liso abdômen. As pernas morenas bem torneadas, ombros amplos, pescoço comprido coroado com um rosto sensual e feiticeiro.
Notou que ela segurava um bebê. Intuiu que este bebê era ele. Talvez. Ela observava atordoada aquele inferno. Viu, que ela estava desolada. Tudo que ele estava vivendo, ela agora vivia também. Ele, o guerreiro Barnabé; sentou-se na lama, finalmente derrotado. E fez algo, que nunca havia feito durante toda a guerra. Começou a chorar. Ela cuspiu rispidamente palavras duras, comandando-o a levantar-se. Ela lhe estendeu o lindo bebê que ele fora um dia, e disse:
- Pegue o menino, vá embora daqui! Você nunca mais para cá retornará! Vá se embora que, pelo tempo que for preciso, enquanto este inferno existir em você; eu o ocuparei em seu nome. Parte meu filho, meu amor. Evade!
Barnabé, fez o que lhe fora ordenado sem discutir. Jamais deixaria a própria mãe passar a eternidade no inferno. Ultrapassando os arrabaldes infernais, foi abandonado pela loucura. Despertou de seu delírio. Totalmente consciente pela primeira vez em quatorze anos, olhou a seu redor, contemplando o fruto de sua loucura e viu que era bom. A floresta, continha um intrincado labirinto maníaco cheio de túneis e infindáveis armadilhas.
Oh irmão, venha. Venha logo. Rapidamente. Rejoice! Rejoice! Dançaremos um último e sinistro tango, antes do fim.
Não teve a menor chance.
O vampiro tinha um nome. Posteriormente viemos a descobrir. Chamavam-no Garibaldo.

Garibaldo, não teve a menor chance.


Arkansas 2013
Assim que Abe entrou em contato com Beleville, foram enviadas patrulhas e outros grupos de caçadores em busca dos fugitivos. Muitos tem uma história para contar a respeito de tudo que aconteceu. A maioria dos que passaram por tudo e ainda estão vivos, calam. São apenas grandes ilhas de siléncio.
Barnabé foi encontrado ainda vivo, dando seus últimos suspiros sussurrando o nome da mãe, na parte mais profunda da floresta ao redor de árvores destroçadas, terra tombada, estacas. Seu arco partido, sua clava com cravo de prata rachada, sua aljava vazia. O carvalho ao qual encontrava-se encostado estava profundamente ferido, assim como ele. A seu lado, segurava uma generosa faca Bowie de folha larga pelo cabo. A ponta da grande faca estava cravada na cabeça decapitada de Garibaldo.


Ana Atkins - Arkansas 1960
Anoitece nos cemitérios. O sol despede-se da terra em suaves tons rosáceos por de trás do que pode ser chamado, a primeira das cidades. A cidade dos mortos.
Água morna lava o corpo de Ana Atkins, no amplo e confortável Box do chuveiro. Banheiro iluminado. Corpo satisfeito e suado. Seios doloridos. É o amar.
Estava no Castelinho do Cemitério Central, intersecção existente entre os dois grandes cemitérios da cidade. Sorrindo, refletia consigo mesma, cantarolando uma suave canção Rock and Roll, sobre a ironia vivida por ela: Após passar por uma adolescência povoada de sonhos vaporosos de amor, onde seus namorados eram Deuses, astros de rock, galãs de cinema; apaixonara-se de modo irreversível, pelo coveiro.
Mas Woundred, não era apenas isto. Dred é um estudioso como todos nós. Um professor razoável, um bom arqueólogo que já passou por muita coisa. Por isto, ele mora aqui no Cemitério Central. Claro, ele enterra nossos mortos, lavra pedra para lápides, vigia e protege jazigos. Mas também, recupera partes degradadas e investiga mausoléus. Encontra e lista, toda a sorte de apetrechos e amuletos que, sem seu trabalho, estariam para sempre perdidos para nós. Ele já encontrou tanta coisa. Explicou outras tantas. Coisas fantásticas. Coisas inexplicáveis. Mistérios.
E deste modo, através de suas reflexões; An chegou à conclusão que Woundred (Dred) apesar de não ser um herói, chegava perto. Para ela, Dred era herói o suficiente. Agora, o problema da idade era complicado.
- Dred amor, vem cá. - Convidou An do chuveiro, enquanto jogava seus cabelos molhados para trás e mordia o lábio inferior. O problema idade Dred. Ele tem 32 anos e eu 19 pelo amor de Titã. Mas está em forma e como é taradinho. "É um velho safado", pensou divertida An com seus botões.
O Castelinho possui aspecto monástico. Tem claustros e muitos nichos. Sua parte central é ocupada por um antigo jardim, circundado por um caminho coberto usado outrora, para reflexão. O jardim é depósito de estatuas de pedra. Em uma de suas três torres, lá no alto, Dred fez sua morada. Uma grande suíte. O suficiente para ser chamada Loft, onde o passado e o presente conviviam em harmonia.
Antes de subirem para a suíte, haviam passeado por entre as estátuas, como faziam em alguns fins de tarde. Tomaram alguns goles de Bourbon. Dred fumou um dos seus fedorentos Charutos Cubanos, que ela secretamente adorava saborear na boca dele, junto com o gosto do Bourbon. O fim de tarde no jardim interno do castelinho estava como sempre, repleto de sombras e eles na intimidade de seu relacionamento, não cogitaram a possibilidade de algumas delas estarem vivas. De serem mais que apenas sombras.
Sombras, nunca acostume-se a elas. Melhor então a escuridão, pois ela exige que fiquemos atentos.
- Dred, amor? - An sai do chuveiro num salto, pegando uma toalha felpuda e enrolando-se a ela instintivamente se põe a escutar. Obedecendo a rígido treinamento, abre uma das gavetas da grande pia do banheiro e dela saca um 38 cano curto, bala de prata. Desvia-se da banheira branca com pés de ferro e aproxima-se da porta fechada. Escuta mais um pouco. Farfalhar de seda, som de madeira flexionada. An relaxa e sorri. Abre a porta.
- Dred seu velhinho sacana, se você começou sem mim...
Um estranho volume, coberto por lençóis de seda, apoiava-se sobre o quadril de Dred. A luz do banheiro lançava um longo quadrado de luz sobre a cama King Size de Dred. An na penumbra da suíte, perto do umbral da porta do banheiro, tentava entender o que estava acontecendo. Dirigindo as mãos a um interruptor na parede próxima, acendeu a luzes.
O rosto de Dred contorcia-se, uma máscara absurda de terror, vergonha e desespero. Uma longa mão ressecada, cinza pálido e de longas unhas afiadas, deslizou sob as cobertas languidamente, tapando sua boca e cravando garras em seu rosto, que verteu sangue. O peso da seda na ponta da cama começa a fazê-la deslizar em direção ao chão de pedra; revelando um pesadelo. Um vampiro, de longa orelha comprida colada ao crânio. De luminosos olhos cor de mel; o mantinha preso à cama, submisso e nu. Mastigava com força a virilha de Dred no ponto, onde situa-se a artéria femoral. O sangue espirrou, mas não foi apenas só sangue que jorrou de Dred. A fera, contemplou demoradamente Ana Atkins, e sorriu com irônica bestialidade.
Um segundo antes da criatura lançar-se sobre ela, An já estava atirando. Olhos arregalados. Sua boca, formava um perfeito O de indignação, raiva e nojo. Conseguiu deflagrar quatro cartuchos, depois, foi lançada violentamente pelos ares para dentro do banheiro. Seu corpo colidiu com as divisórias de vidro do Box do banheiro, que espatifaram-se. Antes mesmo de cair ao chão, An cortada de vidro, tomou pé e apoiada nas pontas dos dedos da mão esquerda, equilibrou-se. Quando suas costas encostaram-se na cerâmica fria da parede do banheiro, assumiu posição de ataque. Arrancou o chuveirinho de prata de seu encaixe, e lançou-se àquela peleja. O vampiro, ferido pelas balas de prata, a estapeou com simplicidade e An foi atirada contra o amplo espelho sobre o balcão da pia, que explodiu numa chuva brilhante de estilhaços. An suspirou e sentou-se sangrando, sobre o balcão da pia. Dilacerada por dentro e por fora. Muito cansada, encarou com olhos serenos, a criatura maldita que lhe sorria mostrando um mar de dentes amarelos e afiados.
"É uma fêmea" - pensou.
- Maldita! Herege! Cria dos infernos! Gulosa, infeliz e inútil! O que você fez com o meu Dred? -Gritou An exausta. Os olhos magoados, cheios de lágrimas.
A vampira, a pegou nos braços e depositando-a na banheira, disse:
- Agorrra, Malphati também tomar banho. Shhhh... Vou lavar-meeee em você. Vocês meee cura. Você me ssserve. Parrr ssssempre.
Neste instante, por que não existem acasos nas obras de Titã, toda aquela luz néon absorvida por An anos atrás no milharal, foi expelida. Brotou dos seus olhos, nariz, boca, orelha e do seu sexo.
An, num rompante, passou os braços firmemente ao redor do pescoço de Malphati, que estava perplexa. E as duas, abraçaram-se num longo e grotesco beijo de Judas. As forças luminosas de Titã consumiram a vil criatura até não restar nada. Nem mesmo cinzas.
Ana Atkins, minha irmã, foi encontrada mais tarde, dormindo profundamente no fundo desta banheira. Estava toda coberta de sangue. Não havia um único corte sequer em seu corpo.


The Roadrunner – Arkansas 1960


Castigando a estrada em alta velocidade, Roadrunner é feliz. Lua grávida e amarela, dança pelo seu universo visualmente compreendido. O infinito está lá por trás destes imensos céus estrelados – Pensa Roadrunner. E eu estou aqui, sobre esta terra lavada de luar. Vento embarace meus cabelos de frente, não me ataque pelas laterais, pois, sou muito veloz e por isto, devo estar pesando agora somente uns duzentos quilos, dentro deste turbinado Chev Impala V8. Liberdade.
Vindo de uma de suas patrulhas pelo trecho entre Beleville e o Tenesse, sentido Tenesse; Roadrunner em seu Chev Impala branco, cumpria sua função. Patrulhar, observar e proteger. Estes, são os seus objetivos primários. Manter-se jovem, feliz, rodeado de amigos e livre para sempre; é o prêmio obtido pela excelência de alto desempenho que atinge exercendo seu cargo.
Implacável, Roadrunner é puro e sábio. Conhece todos os membros do Território do Milho pelo nome. Conhece todos os caminhos, melhor que a palma de sua mão. Faz tudo o que for necessário para garantir nossa proteção, mas, não é um de nós. É elfo.
Roadrunner é da família dos altos elfos. Banido de seu grupo e do seu mundo por questionar os Deuses. Por ser idealista e aventureiro. Perambulou por incontáveis eras pela terra, até o advento da chegada da humanidade e nela, mergulhou de cabeça. Chegou a nós muito fraco e abatido. Veio para cá para morrer. A humanidade o havia consumido. A transitoriedade, a dor e a loucura da espécie humana haviam drenado suas forças até a última gota. Quando chegou aqui, moribundo, estava procurando Titã pelo mundo havia 1000 anos. Sentia-se perdido nas cidades e solitário nos montes. Nós o adotamos, e em nome do nosso amor, Titã o renovou.
O elfo empertigou-se ao volante, erguendo o fecho da jaqueta niquelada de couro. Com a mão direita, tocou pistola que trazia atada ao tornozelo. Conferiu e desabotoou a trava do sabre de prata preso a lateral da coxa esquerda. Com a mão esquerda, tocou a coronha do rifle Bentley de cano duplo serrado que trazia atada ao meio das costas, verificando também, o cruel chicote que trazia amarrado no lado direito da cintura.
Nuvens negras de viração acumulam-se lá para as bandas da floresta de Barnabé, pensou Roadrunner. Energias negativas dirigem-se para o cemitério e para 3T.
– Para qual destes lugares devo ir? – Roadrunner estava num impasse; mas tudo se resolveu, quando viu a sombra do vampiro cruzando o disco lunar. Com uma guinada brusca, adentrou nas poeirentas estradas vicinais de Arkansas, seguindo com olhos de fogo o inimigo.
Little Bill – Arkansas 1960
Little Bill trabalhava no galpão com seu filho Ernest. Estavam pai e filho, cobertos de graxa e irritados. Tinham levado uma surra do motor de seu trator. Não havia modo de fazer a geringonça funcionar. Tudo na propriedade andava as mil maravilhas, o serviço estava adiantado, as terras estavam sendo aradas; até que o trator enguiçou. Little Bill era um homem grande. Ernest era tão alto quanto o pai, mas ainda que franzino.
Sua propriedade, uma gleba, parte do Território do Milho era uma das mais próximas da divisa do estado com o Tenesse.
Ouviram gritos vindos da sede. Gritos desesperados de mulher. Tiros. Urros. Olharam um para o outro por um instante.
– É lá em casa pai! – Sussurrou Ernest para o pai.
– Sim.
Little Bill, aproximou-se de uma caixa coberta com um encerado castanho. Puxou-o com violência e abriu a caixa, retirando dela duas espadas curtas de prata. Deu uma ao filho e disse:
– Parece, que a nossa hora derradeira chegou filho. Peleja filho. Peleja. Alguma delas deve ter conseguido chegar à caixa forte.
Saíram em disparada, cada um em direção a uma extremidade diferente da casa onde nasceram.
Ernest, irrompeu correndo pela porta da frente. Arregalou os olhos, abriu a boca, mas não conseguiu emitir som algum. Tentou desesperadamente retroceder escapar ao horror. Derrapou no sangue caindo com força de bunda no chão a espada voando de seus dedos. A avó, estava morta no sofá. Arrebentada. Um trabuco repousava em suas pernas (ela nunca andava sem ele). Sua cabeça pendia para trás do sofá, presa apenas por, uns míseros fiapos de músculos e tendões do pescoço. Os braços estavam abertos, apoiados no alto do encosto, como de ela estivesse refestelada curtindo uma preguiça segundos antes de morrer. Seu alvo vestido branco de dormir estava rasgado na altura do ventre. Suas entranhas espalhavam-se pela sala inteira, empoleirando-se até na televisão ao som do Carson Show.
Oh meu Deus, entendeu Ernest de repente, ela atirou primeiro. Depois, entregou-se para o abate como um boi de piranha. Sacrificou-se pelas meninas.
Ouviu barulhos vindos do fundo da casa. Berros alucinados, gritos de guerra e o som de espada colidindo com garras. Tenho de ajudar meu pai – pensou Ernest, antes de perder os sentidos em meio a todo aquele sangue.
Little Bill correndo em direção a porta dos fundos da casa rezava por Ernest. Temia pelo filho tão educado, suave e trabalhador. Little Bill era um homem rude, crescera em tempos difíceis e jamais desejou que o filho fosse como ele. Até agora. A distancia de sua gleba não impediu que as forças do mal um dia chegassem a sua família. Por que tinha de ser na sua vez?
Por que não aconteceu com o avô, ou com bisavô que, eram homens muito mais duros e preparados que ele. Lamentava ter mandado o filho para a morte. Na parte dos fundos da casa, ficava a caixa forte. Um bloco oco de concreto maciço. Bunker. Paredes espessas cobertas com aço, enterradas no chão. Uma porta horizontal, corrediça, maciça e pesada de aço e chumbo rente ao solo, era a única entrada. Um vampiro não pode entrar pelo sistema de ventilação, divagava Little Bill, diâmetro de 15 centímetros. Não pode não.
Assim que chegou aos fundos da casa, soube que tinha tomado a atitude correta. Elas haviam conseguido escapar. Sua mãe, sua mulher e suas duas filhas. A criatura furiosa forçava sem sucesso ainda, o alçapão do abrigo. Não venha para os fundos Ernest. – Orou Little Bill pedindo a Titã.
O monstro tinha parte do rosto desfigurada. Podia-se ver os miolos da coisa. Mamãe... Ah, mãe. O trabuco de grandma Sweet Rosie atirava um mistura de pólvora, pedras de sal e pó de prata.
– Vem cá, que eu vou aparar estas suas unhas, bicho desgraçado! – Vociferou Little Bill com um sorriso assassino no rosto.
O vampiro atirou-se a ele, como uma mosca atira-se à mérda. Atacava Little Bill com velocidade e força. Little Bill por sua vez, cumpriu com o prometido e, antes de morrer partido ao meio num jorro “splash” de sangue, contou sete dedos inimigos cortados. Vampiros possuem doze dedos. Cinco em cada mão e um esporão em cada antebraço.
Ernest estava nos braços de Morpheus, e dentro do sonho gerado em seus braços, por um instante, o mundo era bom. Um sol primaveril o iluminou, quando abriu a janela do seu quarto de manhãzinha. Sentiu o familiar cheiro de café e pão assado, vindo da cozinha de sua casa. Ninguém sabia fazer o pão melhor que Sweet Rosie, sua avó paterna. Ninguém tinha tantas histórias para contar quanto ela. Apos arrumar a cama e colocar a roupa suja do dia anterior em um cesto, dirigiu-se à cozinha sem escovar os dentes, para ter com ela. Desceu as escadarias da casa, atravessou a copa da cozinha e encostando-se no umbral da porta; observou a avó de costas. Rosie lavava louça. A luz do mundo vacilou por um momento. O café começou a cheirar queimado. Fervendo, derramou-se pelas bordas da panela. Do fogão a lenha, saltaram faíscas e subiu fumaça preta e naquele momento, ele soube; que seu pão estava perdido. Rosie virou-se lentamente para ele. Suas órbitas vazias o contemplaram e ela lhe falou:
– Corre garoto, corre! Corre garoooooto! – Enquanto displicentemente sua cabeça degolada descolava-se do pescoço, ficando pendurada somente por um feixe de músculos.
Ernest acordou com a casa pegando fogo. Levantou-se desorientado coberto de sangue e com as calças cheias. Estava dirigindo-se à porta da frente, e seus olhos ardiam. Fugia do fogo, quando a criatura surgiu na beira da porta e encarou Ernest rodeado pelas chamas.
O vampiro não entrou para buscá-lo. Ficou do lado de fora barrando sua saída. E lá longe do fogo destruidor, deslocou a mandíbula em um ângulo impossível escancarando bem a bocarra entupida de dentes. Sua língua devassa sibilou projetando-se de modo obsceno e ele abriu seus longos braços com dedos amputados e os estendeu em direção ao jovem, querendo abraçar. Inclinando a cabeça para o lado; chamou-o babando de gulodice:
– Érrrrnest! Vém! Vééém! Hisssssss! Vém!
Foi quando a ponta do chicote de Roadrunner, enroscou-se em seu pescoço. Ernest viu a coisa ser puxada para trás com brutalidade e aproveitando a oportunidade, correu em direção à porta, ao ar fresco, à vida.
Roadrunner, puxou com vontade o maldito e, enquanto o vampiro ainda estava no ar, contorcendo o corpo para ficar de frente para o seu oponente; sacou seu rifle adaptado Bentley. O retorno do chicote lhe trouxe um vampiro enrolado na ponta. O filho do Herege foi recebido a menos de um metro e meio de distancia de Roadrunner por ensurdecedor, explosivo e violento disparo dos canos duplos do VG Bentley adaptado. E deste modo, do peito para cima, não houve mais histórias pra contar. Não sobrou nada. A criatura fulminada ajoelhou-se sobre a relva na frente da casa. Seu corpo convulsionou-se desvairadamente, como que revoltado pela inexistência que o reivindicava naquele instante e tombou inerte de lado, no solo sagrado da nossa terra.
Ernest, amparado por Roadrunner, encontrou a mãe e as duas irmãs incólumes dentro do abrigo.
Roadrunner, um metro e oitenta e cinco, ergueu sua face de marfim farejando o ar. O vento lambia seus cabelos trigueiros. Seus belos olhos esmeralda estreitaram-se até virarem fendas, e ele disse a todos:
– Retornem imediatamente para o bunker amiguinhos. Você também Ernest. Tranquem-se bem. Só saiam depois que Titã partir. Alguma coisa está nos rondando. Ainda não acabou.

You Broke my Teeth – Arkansas 1960
Nos profundos recessos escuros do jogo de telhados da casa de Ernest, vampiro Groodrom observava atento. A fuga não tinha valido à pena. Dos seis irmãos fugidos do milharal, ele sentia, restavam dois. Ele próprio e mais um. Estavam distantes um do outro. Seu objetivo, o objetivo de sua coletividade era: o acúmulo de objetos de poder e fuga via Tenesse, para a implantação de um modesto ninho longe o suficiente do guardião e do território, mas, perto o bastante para que pudessem banhar-se em Titã sempre que quisessem. Assim fortalecer-se-iam, acumulariam objetos de poder, crescendo lentamente em numero e sabedoria; até o dia da virada. Como já tinha sido feito antes eras atrás. Eles voltariam a ser Deuses e fartar-se-iam, em mares de sangue humano. A humanidade submissa seria seu gado. Mas agora, tudo parecia estar perdido. Nunca havia imaginado que um sistema de segurança aleatório, de aparência casual, fosse tão poderoso como o que foi formado ao redor de Titã. Todos eram guardiões em potencial. Crianças, velhinhas, cães, loucos, menininhas apaixonadas, franzinos estudantes, professores e até mesmo padres. Eles não se poupavam por nada, não desviavam-se de seu objetivo nunca. Todos dispostos a sacrificarem-se. Filhas, amigos, primos, mães, pais e até mesmo avós. Inimigos terríveis estes homens. Não pode deixar de sentir grande respeito pelos filhos de Titã. Mas tinha de escapar. Iria escapar por entre os dedos dos malditos. Teria seu próprio ninho e formaria seu exército. Encontraria seus tesouros e um dia, daqui a mil anos dominaria este mundo e depois dominaria outros mundos, até tornar-se senhor do Universo. Isto já foi feito, pensou consigo mesmo, assim diz a lenda; pode ser feito de novo. Virou-se dando as costas ao companheiro morto. Estava preparando-se para partir em surdina na calada da noite, quando ouviu um estalo. O chicote de Roadrunner havia enrolado-se no seu grande pé cascudo.
Foi arrastado do telhado por uma força impressionante. Agarrou-se nas telhas e elas o acompanharam. Agarrou-se a uma viga de madeira de 15x20, mas ela partiu-se. Agarrou-se aos sólidos tijolos de barro, mas eles esfarelaram-se em suas garras. Despencou lá de cima e estatelou-se no chão. Não conseguia partir a corda, nem desamarra-la. Recebeu uma terrível grande pedrada de prata na boca, engoliu pedra e presas; gemendo grasniu:
– You broke my Teeth! You dumb shit!!! Ya broke meeeee Teeeeeeeth!
Ernest sorria para ele, segurando uma funda.
Não era um chicote, agora Groodom chocado, podia ver claramente. Era uma corda de elfo e estava presa ao Chev Implala de Roadrunner que acelerava ao volante. O elfo piscou um olho esverdeado para Groodrom e disse:
– Hey parceiro, vamos dar uma voltinha? Que tal?
Groodrom arregalou os olhos e amaldiçoou o repórter do Tenesse. Cantando pneu, Roadrunner disparou pela estrada pedregosa deserta, levando Groodrom arrastado aos berros; para seu último passeio em direção ao sol nascente. Ferrado na rabiola.


O Retorno do Pastor – Arkansas 1960
Na manhã seguinte a fuga, Titã amanheceu barbada. Lá de baixo, em nossa insignificância, pudemos ver a promessa nas alturas; avolumando-se sobre nossas cabeças enchendo nosso campo de visão e trocando informações com os primeiros raios de sol. Seus suaves cachos de barba espraiavam-se por seis quilômetros, adornando suas bordas. Brandos, sedosos e compridos. Mas o âmago de Titã borbulhava em flashes de luz.
Aos estudiosos, parecia que Titã meditava profundamente.
Cidade Caçador Dascopen. Calvin andava cego e perdido naquela manhãzinha com seu cão guia. Um cego e um cão guia, perdido em uma manhã fria. Patrulhas cruzavam para cima e para baixo a cidade 3T. Intensas atividades de busca. Um caminhão passou ligeiro em direção aos campos onde um trator escavadeira esperava próximos aos carros destruídos na madrugada. Os carros haviam sido enterrados imediatamente após o termino do combate onde somente Abe e Mark voltaram para contar a história. Agora seriam discretamente desenterrados colocados no caminhão e removidos para lugar adequado.
– Bob, meu velho – disse Calvin, 16 anos, a seu cão guia – Hoje eu gostaria de ter asas companheiro. Se as tivesse, voaríamos por toda a cidade e depois de nos divertirmos muito indo a toda parte; Titã construiria um hotel nas nuvens e nós tiraríamos uma soneca. Não precisaríamos de escadas para chegar ao céu.
Bob, cortês como sempre, latiu concordando. Calvin sentiu o aroma de café. Já estavam perto da delicatessen que ficava dentro de um dos mercados. Poderia tomar um cremoso café com torradas. Para Bob apenas os deliciosos biscoitos caninos que Sue a atendente e dona da delicatessen sempre preparava para seus clientes caninos. Sonhadores, Calvin e Bob cruzaram a porta entrando no mercado.
No subsolo, bem abaixo deles, vampiro Cyrus sorriu num hissssss e saiu correndo de volta para os esgotos que levavam ao cemitério. Uma bola de fogo, Calvin, Bob, vidro, torradas, Sue, Delicatessen, café, biscoitos caninos, sonhos e destroços foi vomitada sobre pedestres, ferindo três pessoas, que locomoviam-se pacificamente pelas ruas ao raiar do dia.
Instalou-se o pandemônio na cidade. Mas para o resto do mundo, foi apenas um vazamento de gás. Estes caipiras do interior, não sabem fazer nada que preste.
Cyrus esperto, movia-se com rapidez pela galeria que captava águas pluviais, desviando-se habilmente dos cones de luz que desciam das bocas-de-lobo. Sua manobra diversiva havia alcançado êxito. Agora, era recolher os objetos de poder que havia encontrado nos cemitérios e perder-se nas cavernas que o levariam de modo profundo, para bem longe daquela região. Tudo estava indo bem. Exatamente como havia imaginado.
Mark e Abe insones, junto com um grupo de patrulheiros estavam no cemitério central. Haviam encontrado An, e o que sobrou do gozado, mas inocente Dred. Quando o sistema de calefação denunciou pelo som, que algo estranho acontecia nas catacumbas abaixo de Castelinho.
Neste meio tempo, após o que me pareceu uma eternidade, Titã finalmente liberou-me para busca e extermínio de Cyrus. Eu saí por cima de Titã num raio de fogo puro. Estava muito alto e ninguém me viu. Era apenas isto. Um arco de puro fogo dirigindo-se para o pequeno zigurat construído para mim no fim do cemitério pré-histórico. Chegando lá, no interior do zigurat conformei-me novamente no que eu sou e, do chão do cemitério, brotei renascido novamente como um homem. Todo parto é doloroso. Não existe cesariana, quando se nasce do sal da terra.
Peguei uma pá e comecei a cavar o solo duro. Desenterrei meu caixão. Vesti minhas roupas e peguei minhas armas. Tudo estava bem preservado, menos a ossada do meu último corpo. Corri em direção de castelinho. Quando lá cheguei dei de frente com Abe e Mark. Mark estava ferido no pescoço. Abe estava ferido apenas no orgulho. Estavam fugindo. Já haviam encontrado-se com Cyrus e haviam perdido a primeira batalha. Eles ficaram estupefatos. Em choque mesmo. Abe ajoelhou-se e começou a rezar. Os membros sobreviventes da equipe de busca, começaram a chorar copiosamente. A única pessoa que permaneceu com uma aparência de que tinha tudo sob controle, foi Mark. Ele me olhou bem nos olhos e disse:
– Papai, é você? É você mesmo pai? – depois, desmaiou em meus braços.
O Pastor havia retornado.
Eu abracei e beijei Mark. Acordei An. Abracei e beijei Abe. Abracei a todos. Não havia tempo para explicações. Mandei confinarem Mark na Administração. Disse para que aguardassem o meu retorno e mergulhei nas catacumbas. Combati Cyrus nelas. Combati Cyrus nas cavernas. Combati Cyrus em abismos profundos até derrotá-lo e ele implorar para deixar de existir. Mas eu não fiz isto. Ele tinha poder sobre Mark agora. Seria meu prisioneiro até o fim deste mundo. Aprisionei-o em uma gema que entreguei aos cuidados do meu filho. Graças a ela, Mark apesar se ter virado vampiro, não foi corrompido pelo mal. Possui livre arbítrio e poderes especiais.
Roadrunner parou o carro no meio da estrada deserta próximo a uma árvore retorcida. Já era dia claro. Abriu a porta do Impala e pisou o chão com suas botas de couro de cascavel. Caminhou até a traseira do carro e olhou para sua corda. Coçou a cabeça. No outro extremo dela a perna de Groodrom fumegava aos raios do sol. Groodrom fugira amputando a própria perna. Roadrunner riu alto. Dobrou os joelhos e bateu nas coxas. Groodrom não ia durar muito. Não possuía mais dentes, estava envenenado por prata e sem uma perna. Nunca se regeneraria. Estava por aí escondido em baixo de alguma pedra.
Alguns dias depois após a partida de Titã, Abe apareceu lá em casa, eu estava com os meninos. Mark requeria muitos cuidados naqueles primeiros dias. An também. Eu ia ser avô. Em suas mãos, trazia um jornal que me estendeu. Era jornal de fora. A última matéria da página criminal, era sobre um repórter assassinado. Um repórter inescrupuloso e mal afamado do Tenesse. Um caso que intriga investigadores até hoje. O repórter foi crucificado na parede de seu pequeno apartamento em Bannerville. A seus pés, acharam o corpo muito queimado de um homem enorme; idade e identidade indeterminados. Lhe faltava uma perna e não havia nenhum dente em sua boca.
Fim.

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