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sábado, 5 de outubro de 2013

Canibais na Casa de Guy



Para: Lumyah e G. Raphael


Hannah cheia de adesivos de nicotina, dia de folga as oito e trinta e seis da manhã, acordou-me com uma gentil cotovelada e um sorriso sonolento dizendo: “Mister rei preguiçoso! Megalossauro do sedentarismo acorda! Acorda feliz, que hoje é dia de não fazer nada!”

Dei um puxão nela, arrastando-a para o meu lado e logo fui cobrindo sua boca com a minha. Adoro Hannah pelas manhãs. Mesmo sem ter escovado os dentes. Sua boca é uma delícia. O cheiro de suor do seu corpo é muito bom. Fui afastando as pernas dela com as minhas, beijei sua barriga bonita e beijei todo o resto. O que aconteceu depois fica a cargo da sua imaginação porque, não vou contar; mas garanto que foi um prazer. Pelo menos, pra mim.

Levantei-me da grande cama king-size, sentindo nos pés descalços  chão frio de cerâmica. O sistema de arrefecimento de calor da casa estava funcionando a toda. Devia estar um inferno quente dos diabos lá fora.

Minha parceira, ainda deitada feliz na grande cama, gritou para que pudesse ouvi-la da ducha de boca larga do chuveiro: “E ainda tem mais, hoje é dia de almoço na casa de Guy! Eu adoro comer lá na casa dele, do Guy! A gente vamos (vai) né?”

O sabonete perfumado escorregou-me das mãos molhadas ao ouvir Hannah. Foi de alegria. Além de amar, adorar mesmo uma boca livre; Guy era um grande contador de estórias. Gritei:

– Tô dentro! – Ah, mas que dia livre perfeito – Hannah separa um vinho de valor! Caro! Bem caro e de sabor encorpado pra gente levar; que o Guy merece!

Uma hora após o almoço, nós e os outros convidados, batemos palmas rimos e gritamos; ainda dando grandes arrotos enquanto batucávamos a mesa de pedra da sala de jantar de nosso anfitrião. Passamos a fazer isto, depois de uma das histórias dele, na qual o personagem vinha de uma cultura; em que era de bom tom arrotar quando se comia uma ótima e farta refeição. Dando um grito grave, e lançando um copo topado de conhaque numa churrasqueira cheia de brasas próxima a ele; nosso orador nos silenciou com a visão das chamas e a audição de sua voz. Chegara a hora da diversão!

Caso alguém seja fraco de estômago, recomendo que não ouça esta história e nos aguarde na piscina - disse Guy.
Como vocês sabem, dei sorte de ter boa memória e de nascer num grupo que além de ser antigo; passa aos descendentes o hábito de manter alguns registros dos seus; em um discreto mausoléu, onde somente membros podem entrar e é de lá, que retiro pedaços, trechos de acontecimentos passados e tempero de modo subtil, para que meus convidados possam digeri-los agradavelmente. Quanto a mim, as pessoas me perguntam por que dedico tantos esforços a contar histórias. Eu geralmente lhes respondo: “Minha alegria é admirar-lhes as faces enquanto as conto.” Mas no final, bem sei que hei de me tornar uma destas histórias. Toda pessoa é uma história. Igual ou até talvez; melhor do que muitas das que contei à cabeceira desta mesa de pedra.

Um ancestral próximo, que se chamava Legorn, a margem do rio onde seus animais bebiam observava cedinho; neblina que, corria rente a água corrente ligeira cristalina, sassaricando por entre as pedras cinzentas salpicadas de amarelos, beges, negro e verde-musgo. O ar tinha cheiro de rio, luz, grama, árvore e pedra. Dia ensolarado, mas frio. Cheio de promessas de tormenta. Isto ele percebeu, quando contemplou as duas montanhas mais próximas, polvilhadas de neve. Rodeadas de pesadas formações de nuvens. No estreito entre elas, o caminho já estava tomado por vapores e os paredões estavam negros e lisos. Perfeito seria sem nuvens. Daria para esquiar até a planície. Chateado com a possibilidade da nevasca, Legorn disse:

– Nuvens, ah estas coisas que chamam de nuvens... Estas coisas disformes e distantes que chamam de nuvens... Estas coisas que não respeitam a matemática! Dizem ser as nuvens feitas de água, mas água é um metal e metais não deviam voar. Conta-se uma duas três nuvens; aí a terceira se junta a segunda e já não temos três, temos duas. Logo depois, já são apenas uma e depois chovem e ficamos sem nada. Tenho horror a elas! Nuvens tem olhos. Com certeza são criaturas espaciais. Miasmas extraterrestres conscientes e vivos. Vieram em cometas provavelmente. Nuvens são a vingança do hidrogênio, que ao ser queimado vira água.

E de tanto ficar pensando sobre isto, aos poucos ia acreditando mais e mais no que dizia. Cruzou a pequena ponte de pedras claras em forma de arco que, cruzava sua nascente tocando cabras e ovelhas gordas; quando viu a uma boa distancia, quatro de suas lanosas no descampado aos pés da montanha próximo a floresta de altos pinheiros. Mandou um de seus cães arrebanhar as quatro e não viu, pois estavam escondidos, uns bichos famintos próximo às quatro desgarradas.

A um comando seu, os outros dois cães puseram-se a aglomerar o resto do rebanho em um círculo confortável no campo limpo, próximo a pontezinha e; ele pôs-se a caminho das desgarradas. Enquanto isto, proveniente da montanha,  nuvenzinha esparsa deslizou acobertando os animais ainda distantes que buscava. Já bem mais próximo, mas, ainda livre dos braços brancos da neblina ouviu sons de luta e depois, um uivo de dor lancinante. Seu cão havia sido ferido, teve certeza. Correu e mantendo-se no perímetro intermediário entre nuvem e campo, fez mira em uma sombra curvada sobre algo invisível e, atirou com seu rifle de grosso calibre. Em resposta, escutou um berro animalesco que eriçou os seus cabelos da nuca. Nunca fora homem que se pudesse chamar de valente, era antes lógico e pratico. Achava poesia e filosofia coisas inúteis. Era um pragmático, como quase todo homem que vive junto à natureza. Prezava mais que tudo sua integridade física, pois, era mais do trabalho executado por seu corpo diariamente que, tirava o sustento próprio; não de sua mente. Mas havia o cachorro. Não podia abandonar seu cão. Ele o criara e treinara. Muitas vezes o tratava com rispidez, era duro. Mas amava-o. Os cães, eram  companheiros que a vida havia lhe cedido, para que pudesse realizar seu serviço, ter dignidade, alimento, segurança. Por isto, meteu-se cerração adentro, na direção de onde disparara e acertara seu alvo difuso.

Quando chegou a seu objetivo, viu caído de bruços vários metros além do ponto onde seu cachorro ferido gania, um corpo nú coberto de lama negra grudenta e grama e fezes e folhas. Havia atingido a criatura, pois para ele aquilo não era humano, nas costelas que protegem o pulmão. O buraco de entrada era considerável acreditava, mas ainda não o via. Já o de saída nas costas, não era um buraco; era um rombo com mais de um palmo de largura que apresentava ossos lascados, músculos, tecido pulmonar e pedaços do coração em frangalhos; expondo grande parte da coluna vertebral. Com sua bota grossa de couro, chutou o corpo inerte, fazendo-o rolar ficando de barriga para cima confirmando suas pressuposições. O rosto coberto de lama era dotado de um olho mongolóide com grande pupila negra. O outro olho, que havia nascido mal-formado, estava completamente tapado pela sujeira. Os dentes, vistos pela boca entreaberta foram limados em forma de caninos, indicando que aquele ser com certeza; apreciava carne crua. Neste momento, ouviu uma risada de mofa estridente e descontrolada ao seu redor. Não sabia dizer de onde ela vinha, pois, entre as nuvens o som se propaga diferente. Parecia vir de todos os lados e lugar nenhum. Gritou chamando os outros dois cães, sabendo que talvez eles não chegassem a tempo de salvá-lo. Aproximou-se do cão machucado, apontando a arma de fogo para todos os lados.

“Ian! Ian é você? Encontrei seu filho aqui ferido, ele ainda pode ser salvo, venha cá pacificamente e o levaremos ao hospital das cidades. Não se entregue! Não se entregue a vida selvagem Ian! Os Deuses da floresta mentem!”

Foi quando ao ver à frente um vulto distante, resolveu virar-se para o lado oposto, bem no momento em que uma sombra ia mergulhar na sua retaguarda, segundos antes, desprotegida. A criatura estava para pegar seu rifle pelo cano, então atirou naquela mão, mas isto não deteve o vulto. Sentiu uma lâmina fria penetrar nas gorduras laterais da cintura, segurou a mão que a empunhava e foi ao chão com a criatura. Com o outro braço, tentou empurrar o rosto coberto de graxa e lama para longe do seu, mas, levou uma mordida no alto da testa que arrancou o couro cabeludo. Naqueles instantes, enquanto a outra criatura distante aproximava-se, foi tomado por uma ira indignada fria; tão desprovida de emoção que, no diário; Legorn descreve estes momentos, como se visse tudo acontecer fora do corpo. Puxou a faca de caça que estava metida em suas carnes gordas de lado e para baixo, sentindo segundo ele, nada mais que uma fisgada e conduzindo-a para o meio do peito, com a outra mão do outro braço, direcionou a ponta lâmina para o agressor que estava sobre ele. Quando a arma branca ficou em posição adequada, cruzou as pernas na cintura magra da coisa e segurando o cabo da faca agora com as duas mãos, botou para frente esfaqueando seu inimigo no peito e garganta; ficando coberto de um sangue quente e fedido. Neste momento, sentiu garras na cabeça arranhando seu crânio arrastando-o pelos cabelos em busca da carne macia do pescoço. Um grito primitivo de vingança ecoava em seus ouvidos. Não era Ian. Não era não! Aquelas criaturas haviam vindo das nuvens. Demónios condensados por aqueles vapores malditos. Rolou sobre o corpo que o esfaqueara e se pôs de joelhos. Unindo as mãos em um X estendeu os braços pra cima e para fora, livrando-se das garras que lhe afligiam a cabeça, apenas para receber um murro brutal nos peitos que, o lançou por terra sem fôlego. O monstro violento avançava. Legorn já estava em oração entregando sua alma a Deus, quando seus dois outros cachorros; chegaram atacando a criatura com ferocidade jamais vista por ele antes ou depois disto. Começou a engatinhar em estado de choque na direção onde supunha que o rifle estava, achando-o sob o cadáver que lhe havia esfaqueado. Apanhou a arma, colocou uma bala na culatra, levantou-se e foi andando em direção a luta. Com a cerração a dissipar-se, viu seus dois cães cada um com os dentes cravados nos braços da criatura que, não era criatura coisa nenhuma. Era mesmo Ian MacFlag, um idealista sonhador que tempos atrás, trouxe a família (mulher e filho) para viver longe da civilização na mata mais profunda que conseguiu encontrar na região. Seu dinheiro acabou logo nos primeiros anos. Sem dinheiro, sem tecnologia, sem bens materiais. Não conseguiram tirar o sustento da natureza sozinhos. Muitas vezes, nem quem era nascido e criado naquelas terras selvagens conseguia. Enlouqueceram todos. Devem ter enlouquecido. Legorn, com lágrimas nos olhos aproximou-se daquela coisa que um dia fora homem apontou o rifle para a cabeça de Ian MacFlag e disparou. A cabeça de Ian partiu-se como de fosse um ovo, somente o maxilar de baixo ficou preso ao pescoço; enquanto um pedaço do cérebro empoleirou-se em seu ombro por estar ligado a uma membrana ligada à base do crânio. 

Sem a cerração o dia tornou-se de novo azul e claro, mantendo lá no alto promessas de nevascas e tempestades. Meu ancestral cuidou primeiro do ferimento de seus companheiros cachorros, depois de si. Levou os corpos de mula, enrolados em lona, até a casa degradada dos MacFlag nas profundezas da floresta, onde  para seu horror; encontrou restos humanos de viajantes e peregrinos assim como ossadas de ovelhas. Incendiou tudo. Nunca falou disto a ninguém. Deixou este mundo; rico e cheio de filhos. Seu diário só foi aberto depois que morreu. Exatamente como especificado em testamento.

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