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segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Último Sobrado à Esquerda



Antes de amanhecer o dia, ele já estava seguindo seu rumo. Caminhava. Era andarilho. Passou por baixo de um imenso viaduto acinzentado. Contemplou os postes de luz com seus fios tortos estendendo-se até perder de vista. Cruzou uma avenida de dez faixas, fazendo roleta russa, enquanto uma pálida lua dissolvia-se no céu. Uma vasta massa de nuvens de chuva aproximava-se. Hoje, ninguém verá a luz do sol. Chegou após horas andando ao centro. Um menino de roupas puídas aproximou-se dele.

– Oi F! – disse o menino.

Oi, Dimenor, como vai hoje, moleque?

O menino tirou do bolso do casaco um celular e lhe deu.

– Mandaram eu te dar isto pra você.

– Ok, Dimenor. Tá com fome? Vamos ali naquele boteco na esquina, que a gente conversa.
Dentro do boteco abafado, foram recebidos por um homem gordo, peludo e suado.

– Ô turco, dá pra arrumar dois empadão de carne de gato e duas groselha?

Turco sem nada dizer, sumiu nos fundos do boteco e logo voltou com os empadões. Um palmo e meio de empadão de carne de gato e dois copos de meio litro de groselha.
F e Dimenor comeram com vontade.

Após o lanche, Dimenor disse:

– Os cara, falô que é pra você ligar pra eles agora. Tem serviço pra hoje. Tó, pega estas chaves aqui.

Chovia e como chovia. Chovia cântaros. Em alguns momentos do dia a chuva diminuía e tornava-se uma garoa fria. Estava caminhando pela megalópole havia muito tempo. Passou por centenas de arranha-céus, cruzou por parques arborizados, feiras gigantes, catedrais, shopping centers, observando aquela massa anónima de gentes, que raramente cruzavam olhares e que provavelmente; nunca se reencontrariam de novo.

Nas profundezas de um bairro antigo, enfim, chegou à rua que procurava. O acesso de carro, estava proibido por uma cancela e esta barreira era sinalizada por cones. Havia até uma guarita abandonada. Passou por baixo da cancela e começou a percorrer aquela rua. Portas e janelas de sobrados e pequenos prediozinhos de dois andares, fechavam-se ao lhe verem passar. A cacofonia caótica e movimentada do mundo foi expulsa para longe daquele lugar; como se o tempo houvesse retrocedido; criando um bolsão de silêncio dentro daquela rua centenária.

Farney, mochila nas costas; descia a ladeira calçada de pedras. Uma rua esquecida, em um dos milhares de recéssos e becos sem saída da cidade. A chuva havia encharcado a jaqueta jeans há muitas quadras atrás. Limo esverdeado sobre a superfície da maioria das pedras calçadas provava que aquela via era realmente usada muito raramente. O fim dela terminava em uma grande rotatória. Seis sobrados antigos, quase colados uns aos outros, ocupavam o perímetro solenemente. Sentiu cheiro de marzipan vindo de algures. Os sobrados decadentes eram lindos, pensou Farney. Seus muros cobertos de hera e samambaias crescendo no estuque de suas paredes descascadas. Seus tênis ensopados diziam:

– Brrrrrlurrrf, blurrrf, blluurf.

Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta, e uma de suas mãos tocou o molho de chaves. Imobilizou-se no meio de um passo, abaixando a cabeça. Acima de si, um chorão derramava seus encharcados galhos flexíveis sobre ele. Chicoteou suavemente seus cabelos castanhos, que caíram sobre o rosto até a altura do queixo. Ora essa, pensou, se esta não é a rua dos bobos numero zero. Um arrepio percorreu seu corpo, ele tirou as mãos dos bolsos da jaqueta e do bolso traseiro da calça jeans; produziu uma garrafa metálica estreita. Desenroscou a tampa e tomou um longo gole do conteúdo. Guardou a garrafa no mesmo lugar e do bolso da frente retirou um canivete fino e comprido, com o qual executou alguns rápidos malabarismos. Guardou o canivete no mesmo lugar; e foi aproximando-se do último sobrado à esquerda. Entre a calça jeans e suas costas, havia uma arma de fogo. Um pequeno Taurus coronha de borracha. De um saco plástico escondido em seus ombros retirou uma carteira de cigarros e um pequenino isqueiro. Parou bem em frente ao sobrado distante uns vinte passos. Olhou para ele de cima abaixo, dando em seu cigarro uma longa e deliciosa tragada suicida.

Passou os dedos pelo cabelo molhado, jogando-o para trás. Isto é tudo que possuo, refletiu. Esta é minha herança. Ou será meu castigo? Por tantos caminhos andei. Lembro do primeiro passo que dei para fora de casa. Não importa o quanto queira, após abandonar o lar; parece que nunca mais conseguimos voltar. Este, é o fim de todas as ruas. A rua que testemunhou o primeiro passo, após ser expulso do meu lar, da minha infância, da cama que eu sempre dormia e sonhava. O final de todas as ruas é bem aqui. Ou será o meu final?

Retirou as chaves do bolso. Abriu e empurrou um portão meio coberto de tinta óleo, meio enferrujado; cheio de rococós e pôs se a caminhar sobre uma trilha cimentada maltratada pelas chuvas. Desviando-se da porta da frente, dirigiu-se para os fundos. Contornou um chafariz com cupídos cobertos de trepadeiras. Lá no fundo do jardim sentiu cheiro de jasmim, mas o abandonou. Foi em direção ao limoeiro. Catou um galho caído no chão e deu uma pancada na folhagem dele. O ar se encheu da fragrância do limão. Respirou fundo, fechou os olhos e recitou:
– Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá...

Respirou fundo mais uma vez, relaxando os ombros. Alongou o pescoço, os braços, as costas e as pernas. Olhou diretamente para a porta dos fundos emaranhada de plantas e disse:

– O que está feito, está feito.

Foi até ela e, com os ombros a empurrou. A porta cedeu facilmente. Era muito utilizada. Deu com uma lavanderia sem roupas e notou o chão repleto de fezes. Excremento de gatos, ratos, cães mas, principalmente homens. Cruzou uma ampla cozinha cheia de tocos de velas apagadas e restos de fogueira. Na copa, encontrou o primeiro homem. Era muito magro, pálido. Tinha olhos saltados e ossos salientes.
O homem olhou para Farney e em um estudado gesto cordial, ofereceu um pouco do entorpecente que estava usando.

– Vai aê xará? Manda vê ae pra espantar o frio um pouco mano.

Farney, retirou uma nota de cinco amarfanhada do bolso da frente da calça jeans e jogou pro magrão.

– Toma aê, me passa cinco e me dá o apetrecho que eu vou usar.

Usou o veneno e o ambiente foi envolvido por uma suave luz âmbar. Ficou de muito bom humor. Farney de sua mochila, retirou um frasquinho com pílulas. Jogou duas na boca. Elas estralaram entre seus dentes. Sentiu um relâmpago de excitação e adrenalina percorrer seu corpo. Nada disto presta e tudo é vão, disse baixinho.
O magrão que estava de olho nele, começou a levantar-se segurando um tamborete pesado de madeira.

Farney olhou para ele com maldade dizendo:

– Show Time!

Num piscar de olhos, havia retirado o canivete do bolso e aproximando-se do magrão rapidamente, enfiou o canivete afiado como navalha em seu umbigo e foi subindo com ele até chegar ao queixo do cara. Foi tudo muito rápido. Magrão, só teve tempo de executar um rápido sapateado; entrando imediatamente nos extertores da morte.

O vigia já foi, disse Farney consigo mesmo.
Passou para a outra sala. Três pessoas conversavam e passavam o entorpecente de mão em mão em um dos cantos. Outros dormiam exaustos pelo chão sobre encerados e papelão. Olhou para aquela gente e teve pena.

Bem baixinho murmurou:

– Não é isto o que eu quero pessoal. Isto é apenas o que eu faço. É o meu serviço. Um homem precisa comer.

Foi na direção do grupo de três. Dois homens e uma mulher. Todos em farrapos. Deu uma pernada no homem de aspecto mais saudável, que caiu. Na seqüência aplicou uma cotovelada no outro homem que desfaleceu. Com a mão segurou o cabelo da mulher e bateu a cabeça dela na parede uma, duas , três vezes. Agachou-se e com um movimento da frente para trás cortou a garganta do homem mais forte. Movimento contínuo apunhalou a virilha do outro homem e fez correr a lâmina até sentir que ela havia encontrado a rótula do joelho. Só por garantia pegou a mulher desmaiada e partiu-lhe o pescoço. Os doentes que estavam dormindo, não se levantaram e ele foi matando-os impiedosamente em seu sono um por um.

Uma rajada de metralhadora passou próxima de sua cabeça. Ele ligeiro, rolou para o lado e depois, deu uma cambalhota para frente. Quando seu joelho direito encostou no chão, ele já estava de arma em punho. Deu apenas um disparo. Ouviu um grito. A pequena metranca caiu lá de cima bem à sua frente. Logo depois o corpo de um negão a seguiu. O corpo deu de cabeça no chão espalhando miolos. Apanhou a metranca, conferiu a munição. Ok. Travou e guardou o Taurus no mesmo lugar de antes. Aproximou-se do primeiro degrau da escada que levava ao andar de cima do sobrado e gritou:

– Ô seus bando de filha da puta! Se tem alguém armado aí; tá na hora de usar. Hoje é o meu dia feliz e eu to querendo é morrer. Se ninguém me der meu presente, vou passar todo mundo porra!

Ficou em silêncio escutando. Pessoas confabulavam. Eram cinco. Uma voz rouca respondeu-lhe lá de cima.

- Vai se foder, desgraçado! Váza daqui. Pra que você veio incomodá nóis?

Silêncio. Outra voz, desta vez feminina, disse:

- O que é que tu quer faxineiro manhoso? A gente já fez as mala. Tâmo pronto pra ir embora daqui. Vai lá pros fundos e espera, que quando você voltar já fomos embora. Na boa maninho.

Farney suspirou. Respondeu primeiro com uma gargalhada e depois completou:

- E só saio daqui, depois de ganhar o meu presente porra!

- Então vem, que você vai ganhar o que merece, seu maluco dos infernos.

Por baixo da escada ele entrou em uma ante-sala. Carregou a metranca e atirou para cima descarregando-a na direção onde julgava que estava a porta do quarto do andar de cima.
Escutou gritos e ouviu o som abafado de corpos caindo no chão. Casualmente jogou a metralhadora compacta no chão. Aferrou-se novamente ao seu Taurus e subiu as escadas. Foi recebido por dois tiros de 22 que alojaram-se um em sua coxa esquerda e outro em sua costela. Olhou para a mulher que havia atirado.

- Filho da puta! bastardo! Você passou todo mundo.

Ele ergueu o Taurus lentamente na direção da mulher.

- Não, não todo mundo.

A mulher caiu de joelhos, abriu um sorriso e falou:

- Olha...

A cabeça dela, foi jogada violentamente para trás enquanto seu cérebro espalhava-se na parede descascada de umidade.
Farney travou e guardou o Taurus. Conferiu seu canivete. Pegou a garrafinha de bolso e tomou mais um gole bem comprido. Encostou-se na parede sangrando. Não era pra ser hoje, pensou.

Um por um, arrastou os corpos e atirou no sumidouro que existia nos fundos do sobrado.
Depois subiu novamente as escadas, cheio de dor. Foi ao primeiro banheiro que encontrou. Havia água corrente. Extraiu as duas balas de seu corpo com o canivete. Quebrou mais uma pílula entre os dentes. Tirou a roupa toda e lavou-se no chuveiro com sabão anti-séptico. Fez a barba e se enxugou. Da mochila, extraiu curativos prontos e cobriu seus ferimentos. Eram superficiais. Da mesma mochila sacou também, boxer, terno, gravata, sapatos de couro e rolex. Vestiu-se. Prendeu os cabelos em um rabo de cavalo com borracha preta. Acendeu um cigarro, tragou-o como se fosse o fim do mundo, pegou o celular. Ligou.

- Alô? Aguiar? É, sou eu. Tá tudo bem. Aqui tá tudo limpeza.

- Bom, muito bom F! Tô mandando a equipe de demolição agora mesmo. Trator esteira e caminhão. A gente, vai ganhar uma puta grana com mais este empreendimento imobiliário F!

- Ô Aguiar, ó, eu deixei a documentação e alvará sobre a bancada da cozinha. Cuidado pra não pisar na bosta viu?

- Ok.

- Ah, quase me esqueci, tem mais uma coisa.

- O quê?

- Quando os caras chegarem, manda eles encherem o sumidouro dos fundo de concreto, ouviu? Manda dinheiro pra mãe do Dimenor hoje viu?

- Dito e feito F. e você? Vai pra casa agora curtir a mulher e as crianças?

- Nem sei... Ó, manda o Tuta vir me buscar agora, tá certo?

- Beleza. Vai descansar irmão. A gente se fala mais tarde.

Dez minutos depois, ouviu um carro buzinando no portão. Entrou no banco de trás do sedã.

- E aí, patrão?
- Beleza. Bóra Tuta.

O sedã, subiu lentamente a ladeira que já estava desbloqueada. Todos os moradores dos prédios e sobrados estavam nas sacadas e janelas. Todos o observavam. Alguns sorriam. Pagadores de IPTU. Pareciam querer aplaudi-lo.

– Malditos! – pensou Farney enojado – se pudesse, matava todos eles.


Fim.

Um comentário:

  1. Muito bom cara! Jah havia lido no fórum, mas li mais uma vez. Naum sei por que, mais sempre lembro do Hitman quando leio este conto. Um assassino eficiente e q faz questaum da elegância.

    Mandou bem!

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