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segunda-feira, 27 de maio de 2013

Corrida da Morte

Antes do Nascer do Sol

Por: gu1le

Para Lumyah e G. Raphael



Estevão, foi despertado pela melodia suave do despertador. O dia ainda não havia amanhecido, ainda era noite; mas faltava pouco. Sentou-se na cama, ligeiramente desorientado. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro silenciosamente. Escovou meticulosamente os dentes, preparou espuma de barbear e barbeou-se. Usou a cabeceira da cama e o batente da porta, para alongar-se. Vestiu uma bermuda e camiseta. Passou talco nos pés, colocou meias e calçou um tênis. Ia de mansinho para a porta do quarto, quando ela falou:
– Já vai correr?
– Sim, ou corro ou morro. Continue dormindo.
Desceu as escadas em surdina. Verificou, se a mãe e os meninos estavam cobertos, enrolou um cinto de couro na mão, trancou a porta e partiu pra rua.
Na rua, a lua reinava. Era uma área, vazia de prédios e casas. Exibia apenas lotes vazios, matagais, gatos e cães vadios.
Começou uma caminhada desengonçada que, transformou em marcha e logo depois, em trote. Passou por uma árvore morta, desfolhada cheia de negras aves de rapina que o encaravam com desejo. Fez a curva da estrada de terra; e o estradão sem fim exibiu-se para ele. A lua, insistia em acompanhá-lo à sua direita. Olhou para ela e disse:
– Como você está linda. Venha comigo e ilumine o meu caminho. Se puder, cuide de mim. Guarde-me.
Havia pouquíssimas casas ao longo do estradão. Vindo de uma destas, um cão aproximou-se; orelhas baixas. Quando o vira-lata situou-se à distância correta, desenrolou o cinto e aplicou uma bela lapada; que acabou com a ousadia do bicho. Passou por bolsas de ar quente e de ar frio, enquanto aumentava o ritmo. Começou a correr de verdade. E era ele, o som do impacto de seus pés no chão duro e frio, o ritmo regular de sua respiração, a lua e aquela sombra conhecida, que se materializava todos os dias uns quinhentos metros de distancia à suas costas. O mal encarnado.
Ouviu o rosnado da coisa. À sua direita, Estevão podia já notar que alguma claridade solar ameaçava abençoar o mundo. O monstro de olhos vermelhos começou correr atrás dele. O vento soprava, sacudindo os arbustos ao redor. Junto com o vento, Estevão pode sentir o fedor nauseabundo, que seu perseguidor exalava. Imprimiu um ritmo mais acelerado à sua corrida. Mas, não podia correr demais ainda. Não podia gastar todas as suas energias ainda. Seu corpo lhe ordenava que corresse e corresse. Para salvar a vida. Mas sua mente sabia, que o corpo é frágil e cheio de limites. Se disparasse agora, cansar-se-ia depressa demais, o monstro o pegaria antes de o sol nascer. E a única coisa, que livrava Estevão de sua maldição; era o horário fixado por ele no contrato que assinou. A criatura, estava já há uns cem metros dele. Estevão, aumentou mais o ritmo. Por isto, saía todos os dias pra correr. Para o danado, não o pegar em casa na frente dos filhos, da mulher e de sua querida mãe. O coisa ruim, estava a cinqüenta metros de distância; e o dia havia clareado mas, nenhum raio de sol tocava a terra daquela região ainda. Falta pouco, falta pouco se consolava Estevão, suando em bicas. A criatura, agora estava a apenas dez metros dele e aproximando-se. Estevão, aumentou o ritmo da corrida já sentindo seus músculos doerem. Dava enormes passadas largas. Seus tendões pareciam cordas prestes a se romper. Sentia muitas dores. O coração na mão. Expirava mais do que inspirava. Contava. Inspira um, dois, expira duas vezes, Inspira um, dois, três, expira três vezes. As nuvens, estavam gloriosas, vestidas de alvorada. Sentiu a coisa em seus calcanhares. O corpo apavorado, liberou intensa carga de adrenalina. Começou a correr como um corredor de cem metros rasos. Agora era tudo ou nada. Jogou os ombros para trás inclinou a cabeça para frente e explodiu muscular mente; os pés mal parecendo tocar o chão. Mantinha este ritmo, por quase cinco minutos, quando sentiu a luz do sol nas retinas nubladas de lágrimas. Foi diminuindo as passadas gradualmente; lentamente, sem pressa. Quando parou, suas pernas falharam e ele arriou-se no chão. Olhou para trás, em busca do seu caçador mas, já não havia nada lá.
O pacto feito por ele com a coisa, o monstro, o diabo; possuía uma cláusula. Sendo ele curado do câncer pulmonar por ter fumado a vida inteira, o diabo, depois de ele ver seu primogênito nascer deveria vir buscar sua alma a pé; exatamente vinte minutos antes do sol nascer, quinhentos metros de distância.

Estevão levantou-se. Batendo a poeira da bermuda. Amanhã tem mais, pensou desolado.
Um velho conhecido de Estevão, por coincidência, passou por ele devagarzinho de bicicleta e o cumprimentou:
– Bom dia Estevão!
– Bom dia seu Bernardo.
– Estevão, mas você não falha nesta sua corrida nunca?
– Nunca, seu Bernardo, nunca.
– E há quanto tempo você corre mesmo, meu filho?
– Dez anos, seu Bernardo. Dez anos.




Fim

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