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segunda-feira, 27 de maio de 2013

Corrida da Morte

Antes do Nascer do Sol

Por: gu1le

Para Lumyah e G. Raphael



Estevão, foi despertado pela melodia suave do despertador. O dia ainda não havia amanhecido, ainda era noite; mas faltava pouco. Sentou-se na cama, ligeiramente desorientado. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro silenciosamente. Escovou meticulosamente os dentes, preparou espuma de barbear e barbeou-se. Usou a cabeceira da cama e o batente da porta, para alongar-se. Vestiu uma bermuda e camiseta. Passou talco nos pés, colocou meias e calçou um tênis. Ia de mansinho para a porta do quarto, quando ela falou:
– Já vai correr?
– Sim, ou corro ou morro. Continue dormindo.
Desceu as escadas em surdina. Verificou, se a mãe e os meninos estavam cobertos, enrolou um cinto de couro na mão, trancou a porta e partiu pra rua.
Na rua, a lua reinava. Era uma área, vazia de prédios e casas. Exibia apenas lotes vazios, matagais, gatos e cães vadios.
Começou uma caminhada desengonçada que, transformou em marcha e logo depois, em trote. Passou por uma árvore morta, desfolhada cheia de negras aves de rapina que o encaravam com desejo. Fez a curva da estrada de terra; e o estradão sem fim exibiu-se para ele. A lua, insistia em acompanhá-lo à sua direita. Olhou para ela e disse:
– Como você está linda. Venha comigo e ilumine o meu caminho. Se puder, cuide de mim. Guarde-me.
Havia pouquíssimas casas ao longo do estradão. Vindo de uma destas, um cão aproximou-se; orelhas baixas. Quando o vira-lata situou-se à distância correta, desenrolou o cinto e aplicou uma bela lapada; que acabou com a ousadia do bicho. Passou por bolsas de ar quente e de ar frio, enquanto aumentava o ritmo. Começou a correr de verdade. E era ele, o som do impacto de seus pés no chão duro e frio, o ritmo regular de sua respiração, a lua e aquela sombra conhecida, que se materializava todos os dias uns quinhentos metros de distancia à suas costas. O mal encarnado.
Ouviu o rosnado da coisa. À sua direita, Estevão podia já notar que alguma claridade solar ameaçava abençoar o mundo. O monstro de olhos vermelhos começou correr atrás dele. O vento soprava, sacudindo os arbustos ao redor. Junto com o vento, Estevão pode sentir o fedor nauseabundo, que seu perseguidor exalava. Imprimiu um ritmo mais acelerado à sua corrida. Mas, não podia correr demais ainda. Não podia gastar todas as suas energias ainda. Seu corpo lhe ordenava que corresse e corresse. Para salvar a vida. Mas sua mente sabia, que o corpo é frágil e cheio de limites. Se disparasse agora, cansar-se-ia depressa demais, o monstro o pegaria antes de o sol nascer. E a única coisa, que livrava Estevão de sua maldição; era o horário fixado por ele no contrato que assinou. A criatura, estava já há uns cem metros dele. Estevão, aumentou mais o ritmo. Por isto, saía todos os dias pra correr. Para o danado, não o pegar em casa na frente dos filhos, da mulher e de sua querida mãe. O coisa ruim, estava a cinqüenta metros de distância; e o dia havia clareado mas, nenhum raio de sol tocava a terra daquela região ainda. Falta pouco, falta pouco se consolava Estevão, suando em bicas. A criatura, agora estava a apenas dez metros dele e aproximando-se. Estevão, aumentou o ritmo da corrida já sentindo seus músculos doerem. Dava enormes passadas largas. Seus tendões pareciam cordas prestes a se romper. Sentia muitas dores. O coração na mão. Expirava mais do que inspirava. Contava. Inspira um, dois, expira duas vezes, Inspira um, dois, três, expira três vezes. As nuvens, estavam gloriosas, vestidas de alvorada. Sentiu a coisa em seus calcanhares. O corpo apavorado, liberou intensa carga de adrenalina. Começou a correr como um corredor de cem metros rasos. Agora era tudo ou nada. Jogou os ombros para trás inclinou a cabeça para frente e explodiu muscular mente; os pés mal parecendo tocar o chão. Mantinha este ritmo, por quase cinco minutos, quando sentiu a luz do sol nas retinas nubladas de lágrimas. Foi diminuindo as passadas gradualmente; lentamente, sem pressa. Quando parou, suas pernas falharam e ele arriou-se no chão. Olhou para trás, em busca do seu caçador mas, já não havia nada lá.
O pacto feito por ele com a coisa, o monstro, o diabo; possuía uma cláusula. Sendo ele curado do câncer pulmonar por ter fumado a vida inteira, o diabo, depois de ele ver seu primogênito nascer deveria vir buscar sua alma a pé; exatamente vinte minutos antes do sol nascer, quinhentos metros de distância.

Estevão levantou-se. Batendo a poeira da bermuda. Amanhã tem mais, pensou desolado.
Um velho conhecido de Estevão, por coincidência, passou por ele devagarzinho de bicicleta e o cumprimentou:
– Bom dia Estevão!
– Bom dia seu Bernardo.
– Estevão, mas você não falha nesta sua corrida nunca?
– Nunca, seu Bernardo, nunca.
– E há quanto tempo você corre mesmo, meu filho?
– Dez anos, seu Bernardo. Dez anos.




Fim

O Último Sobrado à Esquerda



Antes de amanhecer o dia, ele já estava seguindo seu rumo. Caminhava. Era andarilho. Passou por baixo de um imenso viaduto acinzentado. Contemplou os postes de luz com seus fios tortos estendendo-se até perder de vista. Cruzou uma avenida de dez faixas, fazendo roleta russa, enquanto uma pálida lua dissolvia-se no céu. Uma vasta massa de nuvens de chuva aproximava-se. Hoje, ninguém verá a luz do sol. Chegou após horas andando ao centro. Um menino de roupas puídas aproximou-se dele.

– Oi F! – disse o menino.

Oi, Dimenor, como vai hoje, moleque?

O menino tirou do bolso do casaco um celular e lhe deu.

– Mandaram eu te dar isto pra você.

– Ok, Dimenor. Tá com fome? Vamos ali naquele boteco na esquina, que a gente conversa.
Dentro do boteco abafado, foram recebidos por um homem gordo, peludo e suado.

– Ô turco, dá pra arrumar dois empadão de carne de gato e duas groselha?

Turco sem nada dizer, sumiu nos fundos do boteco e logo voltou com os empadões. Um palmo e meio de empadão de carne de gato e dois copos de meio litro de groselha.
F e Dimenor comeram com vontade.

Após o lanche, Dimenor disse:

– Os cara, falô que é pra você ligar pra eles agora. Tem serviço pra hoje. Tó, pega estas chaves aqui.

Chovia e como chovia. Chovia cântaros. Em alguns momentos do dia a chuva diminuía e tornava-se uma garoa fria. Estava caminhando pela megalópole havia muito tempo. Passou por centenas de arranha-céus, cruzou por parques arborizados, feiras gigantes, catedrais, shopping centers, observando aquela massa anónima de gentes, que raramente cruzavam olhares e que provavelmente; nunca se reencontrariam de novo.

Nas profundezas de um bairro antigo, enfim, chegou à rua que procurava. O acesso de carro, estava proibido por uma cancela e esta barreira era sinalizada por cones. Havia até uma guarita abandonada. Passou por baixo da cancela e começou a percorrer aquela rua. Portas e janelas de sobrados e pequenos prediozinhos de dois andares, fechavam-se ao lhe verem passar. A cacofonia caótica e movimentada do mundo foi expulsa para longe daquele lugar; como se o tempo houvesse retrocedido; criando um bolsão de silêncio dentro daquela rua centenária.

Farney, mochila nas costas; descia a ladeira calçada de pedras. Uma rua esquecida, em um dos milhares de recéssos e becos sem saída da cidade. A chuva havia encharcado a jaqueta jeans há muitas quadras atrás. Limo esverdeado sobre a superfície da maioria das pedras calçadas provava que aquela via era realmente usada muito raramente. O fim dela terminava em uma grande rotatória. Seis sobrados antigos, quase colados uns aos outros, ocupavam o perímetro solenemente. Sentiu cheiro de marzipan vindo de algures. Os sobrados decadentes eram lindos, pensou Farney. Seus muros cobertos de hera e samambaias crescendo no estuque de suas paredes descascadas. Seus tênis ensopados diziam:

– Brrrrrlurrrf, blurrrf, blluurf.

Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta, e uma de suas mãos tocou o molho de chaves. Imobilizou-se no meio de um passo, abaixando a cabeça. Acima de si, um chorão derramava seus encharcados galhos flexíveis sobre ele. Chicoteou suavemente seus cabelos castanhos, que caíram sobre o rosto até a altura do queixo. Ora essa, pensou, se esta não é a rua dos bobos numero zero. Um arrepio percorreu seu corpo, ele tirou as mãos dos bolsos da jaqueta e do bolso traseiro da calça jeans; produziu uma garrafa metálica estreita. Desenroscou a tampa e tomou um longo gole do conteúdo. Guardou a garrafa no mesmo lugar e do bolso da frente retirou um canivete fino e comprido, com o qual executou alguns rápidos malabarismos. Guardou o canivete no mesmo lugar; e foi aproximando-se do último sobrado à esquerda. Entre a calça jeans e suas costas, havia uma arma de fogo. Um pequeno Taurus coronha de borracha. De um saco plástico escondido em seus ombros retirou uma carteira de cigarros e um pequenino isqueiro. Parou bem em frente ao sobrado distante uns vinte passos. Olhou para ele de cima abaixo, dando em seu cigarro uma longa e deliciosa tragada suicida.

Passou os dedos pelo cabelo molhado, jogando-o para trás. Isto é tudo que possuo, refletiu. Esta é minha herança. Ou será meu castigo? Por tantos caminhos andei. Lembro do primeiro passo que dei para fora de casa. Não importa o quanto queira, após abandonar o lar; parece que nunca mais conseguimos voltar. Este, é o fim de todas as ruas. A rua que testemunhou o primeiro passo, após ser expulso do meu lar, da minha infância, da cama que eu sempre dormia e sonhava. O final de todas as ruas é bem aqui. Ou será o meu final?

Retirou as chaves do bolso. Abriu e empurrou um portão meio coberto de tinta óleo, meio enferrujado; cheio de rococós e pôs se a caminhar sobre uma trilha cimentada maltratada pelas chuvas. Desviando-se da porta da frente, dirigiu-se para os fundos. Contornou um chafariz com cupídos cobertos de trepadeiras. Lá no fundo do jardim sentiu cheiro de jasmim, mas o abandonou. Foi em direção ao limoeiro. Catou um galho caído no chão e deu uma pancada na folhagem dele. O ar se encheu da fragrância do limão. Respirou fundo, fechou os olhos e recitou:
– Meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá...

Respirou fundo mais uma vez, relaxando os ombros. Alongou o pescoço, os braços, as costas e as pernas. Olhou diretamente para a porta dos fundos emaranhada de plantas e disse:

– O que está feito, está feito.

Foi até ela e, com os ombros a empurrou. A porta cedeu facilmente. Era muito utilizada. Deu com uma lavanderia sem roupas e notou o chão repleto de fezes. Excremento de gatos, ratos, cães mas, principalmente homens. Cruzou uma ampla cozinha cheia de tocos de velas apagadas e restos de fogueira. Na copa, encontrou o primeiro homem. Era muito magro, pálido. Tinha olhos saltados e ossos salientes.
O homem olhou para Farney e em um estudado gesto cordial, ofereceu um pouco do entorpecente que estava usando.

– Vai aê xará? Manda vê ae pra espantar o frio um pouco mano.

Farney, retirou uma nota de cinco amarfanhada do bolso da frente da calça jeans e jogou pro magrão.

– Toma aê, me passa cinco e me dá o apetrecho que eu vou usar.

Usou o veneno e o ambiente foi envolvido por uma suave luz âmbar. Ficou de muito bom humor. Farney de sua mochila, retirou um frasquinho com pílulas. Jogou duas na boca. Elas estralaram entre seus dentes. Sentiu um relâmpago de excitação e adrenalina percorrer seu corpo. Nada disto presta e tudo é vão, disse baixinho.
O magrão que estava de olho nele, começou a levantar-se segurando um tamborete pesado de madeira.

Farney olhou para ele com maldade dizendo:

– Show Time!

Num piscar de olhos, havia retirado o canivete do bolso e aproximando-se do magrão rapidamente, enfiou o canivete afiado como navalha em seu umbigo e foi subindo com ele até chegar ao queixo do cara. Foi tudo muito rápido. Magrão, só teve tempo de executar um rápido sapateado; entrando imediatamente nos extertores da morte.

O vigia já foi, disse Farney consigo mesmo.
Passou para a outra sala. Três pessoas conversavam e passavam o entorpecente de mão em mão em um dos cantos. Outros dormiam exaustos pelo chão sobre encerados e papelão. Olhou para aquela gente e teve pena.

Bem baixinho murmurou:

– Não é isto o que eu quero pessoal. Isto é apenas o que eu faço. É o meu serviço. Um homem precisa comer.

Foi na direção do grupo de três. Dois homens e uma mulher. Todos em farrapos. Deu uma pernada no homem de aspecto mais saudável, que caiu. Na seqüência aplicou uma cotovelada no outro homem que desfaleceu. Com a mão segurou o cabelo da mulher e bateu a cabeça dela na parede uma, duas , três vezes. Agachou-se e com um movimento da frente para trás cortou a garganta do homem mais forte. Movimento contínuo apunhalou a virilha do outro homem e fez correr a lâmina até sentir que ela havia encontrado a rótula do joelho. Só por garantia pegou a mulher desmaiada e partiu-lhe o pescoço. Os doentes que estavam dormindo, não se levantaram e ele foi matando-os impiedosamente em seu sono um por um.

Uma rajada de metralhadora passou próxima de sua cabeça. Ele ligeiro, rolou para o lado e depois, deu uma cambalhota para frente. Quando seu joelho direito encostou no chão, ele já estava de arma em punho. Deu apenas um disparo. Ouviu um grito. A pequena metranca caiu lá de cima bem à sua frente. Logo depois o corpo de um negão a seguiu. O corpo deu de cabeça no chão espalhando miolos. Apanhou a metranca, conferiu a munição. Ok. Travou e guardou o Taurus no mesmo lugar de antes. Aproximou-se do primeiro degrau da escada que levava ao andar de cima do sobrado e gritou:

– Ô seus bando de filha da puta! Se tem alguém armado aí; tá na hora de usar. Hoje é o meu dia feliz e eu to querendo é morrer. Se ninguém me der meu presente, vou passar todo mundo porra!

Ficou em silêncio escutando. Pessoas confabulavam. Eram cinco. Uma voz rouca respondeu-lhe lá de cima.

- Vai se foder, desgraçado! Váza daqui. Pra que você veio incomodá nóis?

Silêncio. Outra voz, desta vez feminina, disse:

- O que é que tu quer faxineiro manhoso? A gente já fez as mala. Tâmo pronto pra ir embora daqui. Vai lá pros fundos e espera, que quando você voltar já fomos embora. Na boa maninho.

Farney suspirou. Respondeu primeiro com uma gargalhada e depois completou:

- E só saio daqui, depois de ganhar o meu presente porra!

- Então vem, que você vai ganhar o que merece, seu maluco dos infernos.

Por baixo da escada ele entrou em uma ante-sala. Carregou a metranca e atirou para cima descarregando-a na direção onde julgava que estava a porta do quarto do andar de cima.
Escutou gritos e ouviu o som abafado de corpos caindo no chão. Casualmente jogou a metralhadora compacta no chão. Aferrou-se novamente ao seu Taurus e subiu as escadas. Foi recebido por dois tiros de 22 que alojaram-se um em sua coxa esquerda e outro em sua costela. Olhou para a mulher que havia atirado.

- Filho da puta! bastardo! Você passou todo mundo.

Ele ergueu o Taurus lentamente na direção da mulher.

- Não, não todo mundo.

A mulher caiu de joelhos, abriu um sorriso e falou:

- Olha...

A cabeça dela, foi jogada violentamente para trás enquanto seu cérebro espalhava-se na parede descascada de umidade.
Farney travou e guardou o Taurus. Conferiu seu canivete. Pegou a garrafinha de bolso e tomou mais um gole bem comprido. Encostou-se na parede sangrando. Não era pra ser hoje, pensou.

Um por um, arrastou os corpos e atirou no sumidouro que existia nos fundos do sobrado.
Depois subiu novamente as escadas, cheio de dor. Foi ao primeiro banheiro que encontrou. Havia água corrente. Extraiu as duas balas de seu corpo com o canivete. Quebrou mais uma pílula entre os dentes. Tirou a roupa toda e lavou-se no chuveiro com sabão anti-séptico. Fez a barba e se enxugou. Da mochila, extraiu curativos prontos e cobriu seus ferimentos. Eram superficiais. Da mesma mochila sacou também, boxer, terno, gravata, sapatos de couro e rolex. Vestiu-se. Prendeu os cabelos em um rabo de cavalo com borracha preta. Acendeu um cigarro, tragou-o como se fosse o fim do mundo, pegou o celular. Ligou.

- Alô? Aguiar? É, sou eu. Tá tudo bem. Aqui tá tudo limpeza.

- Bom, muito bom F! Tô mandando a equipe de demolição agora mesmo. Trator esteira e caminhão. A gente, vai ganhar uma puta grana com mais este empreendimento imobiliário F!

- Ô Aguiar, ó, eu deixei a documentação e alvará sobre a bancada da cozinha. Cuidado pra não pisar na bosta viu?

- Ok.

- Ah, quase me esqueci, tem mais uma coisa.

- O quê?

- Quando os caras chegarem, manda eles encherem o sumidouro dos fundo de concreto, ouviu? Manda dinheiro pra mãe do Dimenor hoje viu?

- Dito e feito F. e você? Vai pra casa agora curtir a mulher e as crianças?

- Nem sei... Ó, manda o Tuta vir me buscar agora, tá certo?

- Beleza. Vai descansar irmão. A gente se fala mais tarde.

Dez minutos depois, ouviu um carro buzinando no portão. Entrou no banco de trás do sedã.

- E aí, patrão?
- Beleza. Bóra Tuta.

O sedã, subiu lentamente a ladeira que já estava desbloqueada. Todos os moradores dos prédios e sobrados estavam nas sacadas e janelas. Todos o observavam. Alguns sorriam. Pagadores de IPTU. Pareciam querer aplaudi-lo.

– Malditos! – pensou Farney enojado – se pudesse, matava todos eles.


Fim.

A Última Sexta

A Última Sexta-Feira

Nenê, saiu do trabalho, entrou no carro e foi passear. Rodou lentamente pela cidade. Seguiu rumo aos setores em construção. Parou no bar da Vivi que estava às moscas. Pouco dinheiro na cidade, pensou. Mas Vivi estava lá, só isto, já fazia a viagem valer a pena. Vivi estava linda como sempre. Moreninha chocolate, tinha 19 anos. Tocava aquele estabelecimento desde os 16. Era ela, a mãe que passava o dia todo fora trabalhando, e três irmãs pequenas que cuidava, moravam em casa anexa, nos fundos do bar.

Nenê:

– Vivi, você hoje tá show, sua linda!
– Que isto, Nenê, tô toda suada. Este dia de hoje, tá dando pra fritar ovo no asfalto.
– Deixa de ser pão dura e liga os ventiladores. Você tem 4 um em cada canto do bar, pô.
– Hmmm... assim você me quebra. Mas em sua homenagem; vou ligar um pra gente se refrescar.

As pás metálicas, de um grande ventilador fixado na parede próxima deles; começou a girar.

Vivi, era uma menina simples, vestia-se de um jeito simples. Seu corpo era fenomenal. Vestia um shortinho jeans surrado que permitia que se visse as alças da calcinha e uma camiseta florida curtinha colada ao corpo que mostrava pedaço de seu sutien de cor diferente da calcinha.

– O que vai beber belo?
– Uma cerva trincando, se tiver. Se não, terei de partir pra outro lugar. Em lágrimas por te abandonar, é claro.

Vivi, olhou pra Nenê de rabo de olho. Deu as costas, abrindo o freezer das cervejas. Empinou a bundinha. Inclinando-se para apanhar as mais geladas, colocando-as sobre as mais quentes; quase mata Nenê de desejo. Vivi, foi abençoada com glúteos maravilhosos. Pernas longas e bem feitas. Seios empinados e rijos. Tudo isto, coberto por pelinhos descoloridos. Suada, cheirava a saúde. Cheiro de moça nova. Enlouquecedor.

Vivi colocou a cerva sobre o balcão, abriu e encheu o copo de Nenê, que suava frio e trincava os dentes. Olhou com seus grandes olhos amendoados para ele. Sorriu.

– Ah Nenê, você não tem jeito mesmo. Ainda pensando em me comer?
– Sempre. Não desisto nunca. E não é comer. Que palavra feia. É amar. Amar você. Enlouquecidamente, por pelo menos uns cinco dias ininterruptos.
– Affff Maria, tiozão... deste jeito você acabaria na cova. Seu coração não agüentaria e lá ficaria eu, com um cadáver super feliz; montado em cima de mim. Não, não. Pelo seu bem, isto nunca vai acontecer. Deixa este corpinho, pros garotos mais novinhos.

Nenê virou o copo de uma vez. Ela encheu de novo.

Agora Nenê a olhava de rabo de olho.

– Nenhum deles te merece. Vão te comer, te prender, te estapear e enche-la de filhos. Depois irão embora da cidade. Nunca mais irá vê-los. Isto você sabe, foi o que aconteceu com a Gracinha, sua mãe.

– Então Nenê, será que você não é meu pai?

Nenê emborcou mais um copo. Aquela conversa não estava indo bem.

– Vivi, assim como você, tua mãe nunca me deu bola pra mim. Se, ela tivesse me escolhido, hoje eu seria teu pai e, não um candidato a mergulhar nas delícias do teu corpo.

Vivi olha pra ele demoradamente.

– Eu não quero me meter em confusão, Nenê. Tenho medo.

– Medo do quê? Eu sou um cara do bem. Nunca iria botar você em confusão. Pelo contrário, fica comigo que eu te desejo. Eu invisto em você sem compromisso. Se quiser pode até namorar seus garotinhos que você sonha. Mas, usando anti-concepcional, né?

– Ah, Nenê, tô fora. Eu não sou banda não.

Foi, quando um ronco de motor acelerado assustou os dois. Uma caminhonete Ford Foker importada, vinha na direção do bar descontrolada, a mais de cem por hora. Parecia, que quem dirigia; encontrava-se ébrio ou em pânico.

O veículo, descontrolado atingiu o bar de Vivi na lateral esquerda varando a parede, espalhando tijolos e, lançando o ventilador de pás metálicas sobre o balcão do bar que interpunha-se entre eles. Se Nenê não abaixa, tinha perdido a cabeça.
Um homem cambaleante, sai da caminhonete. Ferido nos braços, peito e pescoço.

– Ela... ela... me mordeu! – Diz o motorista machucado.

Vivi e Nenê, ficam sem entender nada.

– Quem te mordeu cara? Você está bem? Você bebeu? – Pergunta Nenê.
– Chamem a polícia, os bombeiros, alguém – pede o motorista ferido – ela está no banco de trás do carro.

Nenê aproxima-se do Ford avariado. Olha dentro da cabine dupla.

– Não tem ninguém na traseira deste Foker.

Uma mão agarra a barra das calças de Nenê.

– Tem alguma coisa puxando minha calça. Oooops! – Nenê escorrega, cai sentado no chão.
– Nenê? Peraí, me dá a mão! – Vivi salta o balcão, corre para auxiliar Nenê que começa a gritar. Arrastado para debaixo do veículo.

– Que porra é esta? Tão mordendo minha perna. Arranhandooooo. Aaaaaaaah!

Nenê some embaixo do carro, perdido entre escombros da parede demolida. Vivi ouve um rosnado profundo e som de mastigação.

– É ela! – Diz o homem ferido. Minha esposa, é ela. Está louca. Eu ia leva-la ao hospital.

– O que você tá querendo dizer? – grita Vivi – ela pegou Nenê. Tá matando ele a dentadas?

Do fundo da caminhonete, dando a volta por trás, Nenê reaparece. Mutilado. Perdeu dois dedos da mão esquerda. As pernas sangrando, a calça em frangalhos. Segue na direção de Vivi. Logo atrás, no seu rastro, vem o cadáver que um dia foi a mulher do motorista. Rosto desfigurado pelo impacto da colisão do Foker, com parede de tijolos. Pernas retorcidas. Bacia deslocada.
O motorista agarra uma garrafa de cachaça, toma um gole, quebra a garrafa na quina do balcão. Segurando a garrafa pelo gargalo, usando-a como arma de defesa pessoal, diz:

– Por favor, ajudem minha mulher.
– Ô desgraçado. Se aquilo ali é tua mulher, eu quero ser mico de circo. Aquela coisa ali está morta. Pra mim, só pode ser um Exu. – Fala Nenê aos prantos.

Vivi ampara Nenê, levando-o na direção do amplo banheiro do bar. Entra com ele no banheiro, trancando bem a porta. Lá fora pode-se ouvir o som de luta. Grunhidos e berros. O motorista do Foker dá um lancinante grito de dor. Depois, siléncio. Rosnados, som de mastigação.

– Agora já sabemos quem levou a melhor lá fora. – geme Nenê – o que está acontecendo? Será o fim do mundo?

Vivi, concentrada em lavar os ferimentos do amigo na pia. Sem pensar direito diz:

– E logo hoje, que eu ia arrochar você. Merda!
– Eu sabia!
– Não é nada disto, Nenê.
– Eu sabia. Que tu é afim de mim.
– Somos amigos.
– Melhor, sermos amantes.
– Pô Nenê, nem todo estourado você larga do meu pé?
– Você ia me arrochar hoje mesmo?
– Calaboca Nenê! Tu já ta me dando nos nervos!

Nenê desmaia. Pancadas começam a ser dadas na porta. Vivi arrasta um armário de ferro usado para guardar material de limpeza reforçando a barreira. Ainda bem, que eu mandei as meninas pra casa da titia pensa Vivi. Nenê começa a estremecer nos estertores da morte. Nenê ressuscita.

– Nenê? Que foi? Por que você ta me olhando deste jeito? Nenê? Aaaaaaaaaaai! Não Nenê! Não! Eu disse não porra! Aaaaaaaie! Você tá doido?

A última coisa que Vivi pensou antes de morrer, foi:

“ Este filho da mãe, tá me comendo mesmo.”




Fim

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Contos Fantásticos Góticos

Valsando com Mortos





1



Existem coisas que não possuem prazo de validade. Alucinações, fábulas, sonhos, quimeras, mitos e blasfêmias não caducam, envelhecem; ou se desgastam.
Tenho um sonho eterno. Um daqueles recorrentes. Quando ele acontece, mergulho em seus salões, fecho a porta e deixo o mundo por sua conta e risco. Nada posso fazer pelo mundo, nem o mundo por mim. Não que seja visitado toda noite. Ele vem a mim semanalmente. Em tempos tranqüilos, fico sem recebê-lo por quinze dias até. Não acho isto positivo. É sinal que ando trabalhando pouco, penso eu. Sinal que em certas épocas meu espírito deseja permanecer em zonas de conforto ilusórias, pois, a paz para os homens é inútil. No sonho, não há nenhuma lua majestosa. Vago por largos e altos corredores úmidos no subsolo de um castelo. Montado em um atento veloceraptor herbívoro couro-branco (blindado) de três metros de altura. Percorro seções lacradas de um sistema labiríntico que ninguém mais tem acesso. Zonas mortas, detentoras de horrores inomináveis. Fria corrente de ar úmida e sussurrante cheirando a musgo, vem das profundezas e é constante companheira. Lanterna presa em um suporte às costas da couraça que visto, ilumina mais ou menos tudo num raio de dez metros. Subimos montes de pedras perfeitamente talhadas fruto de pequenos desabamentos. Contornamos fendas que levam a abismos insondáveis. Passamos por nichos selados e portais trancados. Pelo caminho; fantasmas me observam. Lá, vejo frente a uma das portas meu pai. Em outra meu tio. Numa outra mais a direita meu bisavô e assim por diante, numa cadeia genealógica sem fim, até que começo a desconhecer aquelas figuras etéreas que me observam silenciosamente. Alguns fantasmas são sérios, outros angustiados, os mais próximos do meu tempo e do meu sangue, esboçam leves sorrisos. A maioria, não parece estar muito contente comigo. Por trás de cada uma destas portas seladas, há a ossada de um parente meu, junto com membros da guarda e de um ou vários demónios. Todos mortos, assim espero. Aí eu acordo. Para mais um dia investigando, mais um dia de batalha, mais um dia na lida; com a morte sempre me espreitando de dentro para fora e de fora para dentro.



2


Entender o mundo como é hoje não é tarefa fácil. Pois ele é assombrado. O que podemos dizer de sombras? Que complexidade existe nelas? Sombras eram consideradas coisas simples. Mas agora e, este agora já é há muito tempo, sabemos diferente. Existem hipóteses formuladas em conjunto por filósofos, sábios, feiticeiros e alquimistas que levaram nações à guerra, famílias e povos ao desespero. Tudo por causa do estupendo e admirável avanço das ciências e da magia.

Afirmam os mais sábios, ter sido nossa arrogância e a certeza absoluta em nossos conhecimentos; a origem das sombras. Esquecemos que empunhávamos uma faca de dois gumes, e ela nos apunhalou mortalmente.

Buscávamos a cura. Cura para uma moléstia. Uma grande enfermidade que ceifava homens, mulheres e crianças por toda a terra. Nem magia nem ciência, conseguiam deter seu avanço. Então, num esforço sem precedentes magia e ciência uniram-se para erradicar a afecção que maltratava os homens; tornando-os contagiosos, desanimados, sem resistência, indóceis e furiosos. E o mal foi erradicado. Ficamos mais fortes, inteligentes e rápidos. Por sete anos, todos no mundo foram felizes, mas um novo padecimento, uma nova mazela pior que a anterior; mostrou sua cara. A doença das doenças. Para esta, até hoje não encontramos remédio. O pior de tudo, é termos consciência da hipótese. Sim! A hipótese formulada por feiticeiros, sábios e cientistas que diziam que a culpa, foi do grupo que sanou a morbidade anterior.

Todos estes homens, nós eliminamos. Penduramos centenas deles em forcas, torturamos milhares, mutilamos, prendemos, condenamos em tribunais. Pois é, matamos cremamos e enterramos. Desaparecemos com eles. Mas de nada adiantou, pois, a hipótese sobreviveu.

As idéias são imortais. Nem a morte nem o tempo, tem domínio sobre elas.

Afirmaram que a doença, a nova peste foi criada inconscientemente, em imensos laboratórios alquímicos escondidos nos porões do mundo. Uma poção mágica surgiu destes esconderijos, eliminando a enfermidade antiga que devastava os homens. Mas um erro aconteceu e, em várias partes da primeira poção sanatória criada; a praga (um animal) estava junto. Menor que um grão de areia, ele penetrou no universo humano. O corpo do homem. Uma vez dentro, expurgou pequenos demónios que viviam em simbiose conosco, nunca nos fazendo muito mal. Esta alteração de saúde no equilíbrio dos seres vivos, gerou sombras. Estas sombras sem mais ter onde morar, órfãs, rugiram furiosas pelo planeta. Infestaram muito do que é animal, vegetal e mineral. E isto não foi o pior. Pior, foi adquirirem predileção pela carne. A nossa carne morta. Sendo elas inumeráveis, invadiram em pequenas legiões corrompendo o que é frágil e o que havia morrido no homem. Tudo começou há duzentos mil anos atrás. Eu e os meus até hoje, nos dedicamos desde que nascemos; à busca da nova cura. Não sendo possível isto, nosso objetivo é reverter-nos a condição anterior ao menos. Que vivamos em simbiose. Não sendo isto possível também; então um lenitivo, algo que as faça dormir. Desejamos viver em paz, com nossas sombras para podermos lutar contra milhares de outros problemas. Por isto, estamos em guerra. As sombras não querem sossego. Possuem temporariamente os mais fracos. Invertem e matam nossos bebês nos primeiros dias depois do nascimento. Aproveitam-se da sua fragilidade. Sombras querem extermínio vingativo total. Processo lento, pois somos fortes (a maioria), mas efetivo. Éramos bilhões, agora somos uns poucos milhões.



3



Pensando profundamente, observo. Os amanheceres deste mundo, mais e mais se tornam estranhos. Normalmente são belos. Mas diferentes. O sol ainda brilha firme forte e de certa forma, os dias agora são mais claros depois que o sol (sol menor) que existia escondido por trás do sol; resolveu aparecer também para nos iluminar desde antes da alvorada, até o meio da tarde. Nossas noites, são encantadas todo mês pela imensa lua amarela, que move as marés e, diariamente pelo preguiçoso cometa rabudo que ocupa um quinto do nosso céu, podendo ser observado todas as noites neste ponto do planeta, há mais de cento e cinqüenta anos. Do alto de um monte, dos muitos montes que circundam a região; pode-se ver ao longe, torres e contrafortes de um bárbaro castelo gótico, de pedras pretas com treze torres de alturas variadas, sendo quatro delas altíssimas. Castelo Pedra Preta. O imenso, grande e vasto Castelo Pedra Preta.



Ele domina o oeste. Está a montante (perto da nascente) de um rio caudaloso que passa submisso, na base do abismo à seus pés trezentos metros abaixo. Assenta-se sobre uma vasta meseta, circundada por planícies. É rodeado de ambiente primitivo selvagem e abandonado, onde em algumas faixas verdes, pode-se ver dóceis manadas de veloceraptors herbívoros criados por meus antepassados. Erigido há tantas eras atrás que é impossível determinar sua idade, Castelo Pedra Preta se mantém supremo, ereto e firme como se fosse recém construído. Alto que parece arranhar o céu, em suas laterais vislumbra-se como se fossem dedos negros fincados no terreno pedregoso; imensos arcobotantes. Do lado de dentro, feixes estruturais imensos nascendo de umas poucas colunas; abrem-se para sustentar abóbadas nervuradas a perderem-se de vista nas alturas e na penumbra sempre móvel, permitida pelos seus vitrais empoeirados que, captam luz de modos diferentes de acordo com os movimentos solares, da lua quando em plenilúnio e, do cometa (reformas recentes feitas no século passado). Eu caminho por este castelo. Este castelo é meu por direito de nascença. No topo da mais alta torre, analiso o mundo que revoluciona-se ao meu redor. O tempo para mim, acontece diferente. Logo (daqui a alguns dias), terei que ir para as profundezas do castelo iniciar meus trabalhos. Mas antes, lerei o livro dos ventos, avaliarei a intenção das nuvens, analisarei o que a luz esconde ou quer calar. Arrancarei informações das aves do céu e de todo o espaço ao redor do meu domínio. Digo ao meu velho capitão da guarda e ao jovem pajem que me acompanham para se retirarem, pois o clima aqui no alto se tornará insuportável. Antes de partirem, o pajem aproxima-se subserviente e me estende um odre de vinho. Não arredarão o pé enquanto eu não tomar longos goles do poderoso vinho de Pedra Preta. Eles querem que meu corpo mantenha-se forte e aquecido. Agora que venha tudo, que se abra o mundo.



4



Tempestades chicoteiam a torre e meu corpo nu, coberto de cicatrizes. Raios cruzam os céus, atacam os pináculos de vez em quando, mas não causam danos. Nunca conseguem causar danos. Trovões ensurdecedores põem meus ouvidos a zunir. Pedras de gelo fazem meu corpo formigar, malhando minhas carnes mas, como tudo no mundo é cíclico, passa. Vem mais um anoitecer. Junto com o anoitecer, astros e estrelas movem-se impávidos sobre mim. Por sua vez, algum tempo depois, melancólica manhã marrenta expande-se descolorida daquela profunda escuridão, apagando o lume de todas as estrelas; sejam elas naturais ou artificiais. Aí, sombrias nuvens são observadas. Movem-se languidamente pelo amplo firmamento a rolar. Imensas embarcações abandonadas à deriva. Os sóis como que enfermos, recusam-se a mostrar a face oferecendo apenas lampejos, um deles segue inexoravelmente rumo ao poente. Quando de novo chega o ocaso, luz opaca torna lúgubre tudo que podia ser visto. O entorno observado sob qualquer ponto de vista mostrava-se pesado, mudo, tétrico e opressivo. Vendaval gemeu sacudindo tudo. Forte chuva avassaladora caiu novamente. Vento de tormenta ensurdecedor, urrou mundo afora, rachando nuvens expondo constelações depois calou-se. Aconteceu gélido azul escuro fundido com escuridão. Desta indiferença; terrível siléncio desolador que abala, enche de medo e perplexidade estabeleceu-se entranhando-se em tudo que existia ali. Depois propagou-se mais além sumindo no horizonte primário. Os demónios estavam indignados.



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Um dia de descanso. Pronto. Hora de ir trabalhar. Sou banhado, aquecido, alimentado e medicado. Chamo cinco membros da minha guarda pessoal, os mais valentes, todos solteiros. Não quero nenhum pai de família andando comigo. Existe sempre o risco de nenhum de nós voltar de lá. Metemo-nos nós seis corredores adentro, vencendo quilômetros de distância por amplos corredores de pedra negra coberta de limo fosforescente que serpenteando, nos levam para baixo, sempre para baixo. Segurem firme suas tochas homens. Estamos indo nos encontrar com monstros.



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O sudário se moveu. Detectei. Senti. Movimento único, mas genuíno. Quase imperceptível. De nada adianta observar quando escutar é o necessário. Este trabalho exige concentração, crueldade e indiferença. Um assobio sobrenatural. Vento desconhecido que chega até nós; é a canção dos exilados caídos que contorcem-se pelos indecifráveis espaços estelares. Fragmentos fossilizados de murmúrios pertencentes a Deuses ancestrais, revelando mistérios que não somos capazes de compreender pois, é impossível juntar as partes. Às vezes, isto é tudo o que se tem a disposição para executar o trabalho. É fundamental estar atento aos detalhes. O conhecimento profundo enterrado no abismo de olhos mortos, é conhecimento apodrecido entranhado na carne. É a sabedoria dos comedores de cadáveres. Vermes. Deixo o olhar percorrer o lugar. Apuro mais ainda a audição. Investigo a sombra dos objetos ao redor. Partículas suspensas. Raio de luz imóvel no ar. A coisa amorfa amarrada sobre a mesa, não quer abandonar sua inércia, mas está sendo forçada a isto. Algo que manipula é o responsável. Um manipulador. Uma força, uma vontade vinda de algum ponto externo. Perto, mas abaixo do meu nível de percepção. A criatura existe, mas será ela a habitar este vaso? Em agonia, medo espasmódico arranca fedorento arroto gastrintestinal daquelas tripas frias. O corpo treme tentando voltar atrás, mas é inútil. Sombras dançando pela parede, fazem do aposento um espaço aterrador. Lôbrego de ansiedade esta marionete retorce-se arqueando a parte traseira. Então finalmente, suas extremidades se movem. Detenho meu olhar naqueles apêndices sem sangue. Erro meu. Já possuído plenamente, aquele objeto crava seu olhar em mim, exercendo hipnótico domínio. Minhas mãos descontroladas, atacam meu rosto mas, graças a máscara de ouro que uso, não tenho as órbitas arrancadas. Assumo controle sobre meu corpo novamente. Apanho haste comprida encostada a parede. Apoio afiada lança de aço polido da ponta da haste no plexo solar deste reanimado, e faço a primeira tentativa de desorganizá-lo devolvendo-o a morte. Entendo que minha mente está a ser golpeada. Meus olhos detectam ilusórias formas luminosas ao meu redor, brilhando em uma caótica explosão multicor. Eu resisto.

A obscuridade da sala parece rumar em direção a estas luzes. Mas sombras sempre irão de encontro ao negrume. No mundo natural, sombras vão de encontro a escuridade. A luz sempre empurra a sombra de tudo que existe para a grande barriga vazia e insaciável do mistério. Então o que vejo é falso. Sombras não fogem do negror, vão de encontro a ele. Algo de outros mundos sussurra em minha mente:

“A luz é algo que ocorre na ausência da escuridão. A luz não é algo tangível nem existente por si mesma, visto que para poder propagar-se necessita da vasta ignorância abissal criada pela negrura.” Cravo torcendo profundamente a lança no externo e depois, entre os olhos daquela caruara não-viva submissa, mas persuasiva. A criatura, consegue assim novamente atingir o estado entrópico. Que decomponha-se em paz de agora em diante. Digo aos homens para remover os ferros, cortar as amarras e colocar aquela imundície na padiola pois, iremos cremá-lo na borda da abertura logo abaixo, que se abre para o precipício que pertence ao rio caudaloso.

Assim que as tiras de ferro e couro são retiradas, aguardamos todos de armas em punho que a criatura salte e prendendo-se ao teto, comece a nos amaldiçoar furiosamente. Mas isto não acontece. Nunca acontece.



7



A padiola é fixada sobre um vagonete atrelado a um veloceraptor couro-pardo cauda longa de cabeça azul, alfa. Velho, violento e sábio não se assusta com qualquer coisa. Um de meus homens fica para trás em uma junção de corredores, pronto para acionar mecanismo que lacra aquela seção que estamos percorrendo, caso algo saia controle. Caso aquilo seja um ardil do demónio. Percorremos nós cinco, aqueles largos caminhos calados. Alguns dos veloceraptors herbívoros adeptos do defastio; lúdicamente batem as caudas curtas (mais curtas que de um veloceraptor carnívoro de combate) ativando a fluorescência do musgo cinza que impregna as paredes do subsolo de Pedra Preta liberando aroma agreste naquele ambiente cheio de gotículas. Ah, como eu amo os raptores. Faltando quinhentos metros para chegarmos a abertura que dá para o abismo, ouvimos canto do opulento rio cem metros abaixo. Eu escutava também som de cachoeira, produzido pelos canos e dutos de drenagem pluviais que, sempre mantiveram Pedra Negra enxuto em sua totalidade.

O raptor cauda longa de cabeça azul, emite um trinado de alerta. Estamos em formação de escolta. Vagonete ao centro. Há algo errado. Olho ao redor. Esta parte do corredor dará um bom lugar para combate se for o caso. Como disse antes, tudo está diferente. O que sabíamos como certo, agora quase não tem mais serventia. Formo em mim um pensamento e uma vontade. Verbalizo:

­– Pedra Negra. Fendas!

Até onde minha voz verdadeira (sem eco) alcança, o corredor executa suave movimento de serpente deslocando-se, obedecendo a meu comando. Os raptores treinados, enfiam garras e presas nas fendas das pedras escalando-as. Meus guerreiros de lanças em punho, máscaras de ouro e amarrados em seus animais, assumem posição de ataque. Imóveis. Aguardando. Abro as presilhas que me unem ao meu animal. Liberto-o do vagonete. Desmonto do raptor cabeça azul, seus olhos cruéis investigam os meus procurando fraqueza. Um instante depois, ele desvia o olhar. Sou seu igual. Caminho até o ser coberto pelo sudário. É aí que a criatura, coisa que nunca existiu no mundo natural, dá o bote. Molusco mutante morto-vivo de quatro metros de comprimento, olhos aracnídeos com vinte tentáculos compridos ao redor do corpo dotado de duas bocas cheia de dentes afiados nas duas extremidades.

Sombras são capazes de fazer isto, de fora para dentro; quando possuem a carne morta do mundo.



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Velozes apêndices móveis disparam na minha direção. Dou um passo para frente e à esquerda, diminuindo a distancia do bote induzindo o adversário ao erro. Golpeio com a lança amputando os pseudopódes do inimigo. O raptor cabeça azul(1) passa sobre minha cabeça, grudado nas pedras enquanto um dos guerreiros, montado em outro raptor na parede oposta; arremessa sua lança acertando o monstro em seu âmago. Um bom arremesso, mas inútil. Deve-se inutilizar o cérebro para que a criatura sossegue por uns instantes e possa ser cremada. Agora eu sei. O velho raptor(1) salta da parede aterrisando sobre as costas da criatura trespassada. Com patas fortes dotadas de garras afiadas de quarenta centímetros, cabeça azul, rompe a musculatura do costado do monstro estraçalhando. Imediatamente tentáculos saltam da carne exposta enrolando-se nas pernas e pescoço do meu velho raptor de cauda longa(1). Um veloceraptor amarelo(2) preso ao teto acima  do possuído, é empalado vivo por outros apêndices esquisitos e afiados. Meu guerreiro(2) montado nele desprende-se da sela. Caindo do teto sobre o monstro agarrando-se ao veloceraptor cabeça azul(1) tentando escapar das  mandíbulas mortíferas. Mais um tentáculo enrola-se no tórax encouraçado de outro de meus guerreiros(3). Possuindo um ferrão na ponta, este tentáculo afunda-se na coxa do homem atingindo também seu raptor(3); enquanto injeta doença nos dois. Este homem(3) num lampejo de bravura imbecil, corta a cabeça de seu raptor antes que fique tomado; enquanto enfia uma granada mística dentro da sua própria armadura. Atira-se sobre o monstro cheio de extensões protoplasmáticas luminosas coloridas. A explosão e o fogo intenso nos deixa desnorteados. Meu corpo é jogado contra as pedras negras. Ar escapa de meus pulmões. Vejo apenas a parte inferior do raptor empalado ainda agarrada ao teto, o resto sumiu. Carbonizado. Grito de tristeza, chamando meu velho raptor cauda longa cabeça azul envolto em chamas, ainda atacando o monstro a dentadas antes de arder totalmente e tombar sobre o inimigo vencido. Rolo pelas pedras apagando o fogo de meus cabelos e vestes. Perdi três raptores e dois homens. Agora somos apenas três homens e dois raptores. Onde estão?

Desmaio.



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Ah maldição! É tudo sempre igual, até que chega o dia em que não é mais. Não há padrão, não existe estabilidade. Sinto-me desamparado. Uma mão me pega pelo ombro arrastando-me para longe das chamas. Olho para agradecer e imagino que devo estar sonhando. Meu avô me sorri benevolente. Poderoso. Um dos fantasmas que sonhei. Será que de tanto delirar em meus sonhos, os transformei em realidade? Não, não sou tudo isto. Ele aponta um dedo robusto, grosso como salsicha para as paredes abauladas de pedra negra. Sinto-o formando um pensamento e uma vontade. Quando ele verbaliza, a parede obedecendo a comando; começa a se desfazer exibindo um panorama alucinado; como se o ambiente estivesse sendo varrido por rajadas de gás comprimido. Lá fora, vendaval de furacão retorce a planície. Arrasta pedra, veloceraptor, árvore, areia, peixe e demónio numa ciranda mágica. Macabra. O disco lunar é janela donde aparece rosto contorcido de besta-fera maldoso, maldito a gargalhar – eu sempre soube que ele estava lá. Os sóis estão distorcidos e também o cometa. Vovô me pega pelas mãos e flutuamos no ar. Quando percebo, estamos dançando lá fora. Estamos valsando ao som imenso do turbilhão. Somos parceiros  dançarinos ébrios desvairados. Um braço decepado passa lentamente por nós, uma criança podre com os olhos vazados também. Meus dois últimos guerreiros, giram pelos ares cobertos de chagas jorrando sangue que flutua ao redor deles. Piscam o olho para mim. Capturados por um túnel de vento; desaparecem na distância com velocidade espantosa. 
Prossigo minha valsa funesta. Fatal. Rodopiamos sem sair do lugar. Meu avô, entre um compasso e outro, mira-me nos olhos. Escuto em minha mente seu pensar:




“Não tenha medo. Não tenha medo. Nada adianta. Tudo passa. Tudo. Um dia vamos vencer. Um dia vamos perder. Um dia veremos tudo. Um dia seremos tudo. Um dia esqueceremos tudo. Um dia tudo acabará e será o fim para sempre. Mas não agora. Não agora. Não tenha medo.”



Foi então que senti uma grande paz, apesar da revolução extrema ao meu redor. E aí, soube que estava morto. Aquela seção de corredor havia sido hermeticamente fechada para sempre. Eu dentro. Lacrado. Minha parte do trabalho havia chegado ao fim. Que a próxima geração prossiga com as pesquisas. O mundo, talvez seja um sonho dentro de um sonho. Diariamente, somos obrigados legitima-lo. Eu, vovô e todos os outros; estamos cansados deste trabalho sujo.

Por: gu1le
Como sempre, dedico este conto a Guilherme Raphael M. M. e Lumyah M. M.