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domingo, 17 de março de 2013

A Raposa Prata

Este é um dos contos que mais gosto.


*****


Estava andando sozinho pela via. Era madrugada. Lojas fechadas. Percorria avenida larga de uns vinte metros. Bem no meio dela, observava vitrines que me coloriam, de um lado e do outro. Algumas lojas, eram de miudezas. Vazando das vitrines, luzes pintavam a rua molhada pelo sereno. Muitas, exibiam figuras plásticas. Manequins vestidos com roupas da moda. Vários tipos de loja a avenida possuía. Brechós ostentavam peças antigas. Bem no centro da larga avenida, pude ver ao passar por uma delas, um Zoot suit. Imaginei-me dentro dele. Rebelde usando Zoot, cabeça rapada, corte semi-escovinha; pilotando uma lambreta envenenada. Sorri.

Sobre minha cabeça, parecia existir um infinito céu preenchido de luminosa névoa clara. Cabeça leve e desanuviada, apesar de certa sensação de descolamento. As várias Genebras, que havia entornado goela abaixo pelos bares da cidade, haviam ficado para trás junto com a festa. Fora do sistema. A solidão daquela noite era bem-vinda, abençoada.
Aconteceu de repente. Senti cheiro de ozônio no ar. Os pelos do braço arrepiaram-se. Não me atrevi a olhar para cima quando, uma enorme mão; poderosa e fumegante vinda do alto acariciou meu rosto. Schrecklichkeit! O mais absoluto Schrecklichkeit (Terror).

Em choque, ouvi um vento que tinha voz? Brisa soprando meus cabelos sussurrou palavras que não entendi. Minha visão periférica, incapaz de interpretar corretamente o que vislumbrava; deu-me em compensação outra coisa, com certeza. Parecia o final de um longo braço. Um braço molusco em parte carne rosa, com filamentos insetóide verde-jade e negro. Possuía sensores, câmeras, ganchos mecânicos, agulhas, garras, antenas de transmissão e pelos. Acredito que o que aconteceu foi:
Minha memória ou meu cérebro trocou a verdade; por imagens mais apetecíveis, suportáveis. Senti um peso, envolvido em um manto leve, impermeável e negro, sendo depositado sobre os meus ombros. Mesmo assim, não tive coragem de olhar para cima. Nem para os lados olhei. Seguia caminhando, sem correr. Morrendo de meda. E, grama a grama, quilo a quilo; o peso aumentava. Era carne, isto podia sentir. Do meu lado direito, vi por entre as dobras do manto; joelhos. Na nuca, sentia o respirar de um abdômen. Do outro lado ombros, braços e cabeça. Uma cabeleira, que não era minha, prateada como um luar; escorria até a altura da minha cintura. Pelo peso, parecia ser uma mulher. Passei a sustentar o peso deste corpo sozinho. Continuei caminhando sem olhar para trás. O que quer que tenha depositado ela sobre meus ombros, havia ido embora.

Determinado, segui adiante caminhando em silêncio; até meu loft chique na Rua Bóra-Bóra. Havia algo muito sobrenatural, em tudo isto que estava me acontecendo. Sentia nos ossos. Se acreditasse em alma diria, que senti isto nela, na alma. O porteiro, amigo meu, acostumado com algumas extravagâncias esporádicas minhas. Foi abrindo uma de cada vez, as barreiras elétricas e portões blindados que, protegiam aquela fortaleza de gente rica.
– Fergusson, valeu por ir me liberando sem perguntas – disse ao porteiro.
– Ah Trevanian, não é todo dia que um macaco bonito como este que você está carregando cai da árvore.
Olhei para o lado, e vi dois pares de olhos lindos me observando com curiosidade. Com o braço de cima ela segurava-me pelo pescoço, com o outro apoiava a mão enganchada no meu cinto. Os joelhos dobrados chegavam à altura do meu umbigo.
– Fergusson; tá com problema de vista? Estou enrolado numa Raposa Prateada. Super embriagada, como você pode bem notar.
– Verdade Trevanian. E que raposa, hein? Sugiro que você suba pelos elevadores de serviço. Um segundo antes de você entrar, dei pause nas câmeras. Se o síndico ou algum morador ver seu novo casaco, você terá problemas administrativos e jurídicos, talvez até criminais.
– Ok, boa noite Fergusson.
– Bom dia, Trevanian. Cuide bem desta doidinha. Não faça nada que eu não faria.

Pelo elevador dos fundos, que carregam mundos, cheguei a casa com ela nas costas. Ela era leve e cheirava bem. Não a perfumes, mas sim ervas.
Coloquei-a com suavidade, em um enorme sofá de couro ecológico. Ela embrulhou-se no manto. Encarava-me com silenciosos olhos profundos. Inteligentes. Universos em expansão. Brilhantes.

Acendi um cigarro Continental-Op. Traguei fundo tentando me acalmar, mas, minhas mãos tremiam descontroladas. Sob o peso de aquele olhar, senti imensa necessidade de um drink.
– Quer beber algo?
Ela fez que não com a cabeça.
Dirigi-me até o bar e peguei uma garrafa quase cheia de escocês. Enchi um quarto do copo. Dei uma bicadinha, sentindo o aroma. Deixei o malte espalhar-se pelas minhas papilas gustativas; depois virei o resto de uma vez. Senti calor invadir meu corpo. Senti o medo recuar, para um canto escuro de meu ser. Traguei mais uma vez o continental e, esmaguei-o impiedosamente num cinzeiro de cristal. Olhei para as janelas panorâmicas atrás do sofá onde ela estava. O dia vinha nascendo. Seria um dia quente. Peguei o controle universal que ficava sobre o balcão do bar. Acionei o sistema de ar-condicionado no máximo e, escureci o vidro das janelas. Liguei suave iluminação indireta. Coloquei musica libertadora no som ambiente, quase no limite mínino da audição.
Girei os ombros em movimentos circulares, relaxando os músculos das costas. Massageei o meu pescoço. Esfreguei a cabeça vigorosamente. Abri e fechei a boca, relaxando a mandíbula. Toquei a ponta dos pés. Suspirei profundamente. Ela me observava do sofá. Gritei:

– O que é que vocês querem desta vez? O que é? Odeio quando vocês aparecem no mundo, porra! Odeio! O que seria tão importante, para eles mandarem uma Raposa Prata?

Pude a ver sorrindo na penumbra. Sacanagem. Avancei para ela, estava com raiva. Quando a peguei pelo braço esquerdo, arrancando-a do sofá, ela o puxou para baixo; socando meu estômago com o direito. Fiquei sem ar, soltei. Ela me pegou pelo cinto e pelo colarinho atirando-me alto contra a janela blindada, sem emitir som algum. Vi estrelas. Escorri lentamente pelo vidro, deixando rastro da minha baba nele; até beijar o chão. Senti cansaço. Ela arrastou-me até o centro da sala. Colocou os joelhos sobre meus braços. Segurou meu rosto com ambas as mãos. Olhou-me com sabedoria, paciência e determinação. Disse:

– Trevanian, tic-tac. Temos um serviço a fazer. É coisa simples. Perigosa, mas simples. Desistir não é opção. Agir como um novato, não é opção. Agir como um ser humano normal, não é opção. Cale-se e execute o serviço que lhe foi designado, em nome das forças maiores sem frescuras, ok?
– Forças maiores um caralho!
Ela aumentou ligeiramente a pressão das mãos no meu rosto. Meus olhos quase saltaram pra fora da cara.
– Ok? Trevanian... Pensa bem. Tic-tac.
– Ok, Silver Fox. – Esmoreci.
Ela removeu as mãos do meu rosto levantando-se, me estendeu a mão, piscou um olho e sorriu. Disse:
– Quer que o acompanhe ao chuveiro para relaxar?
– Ok, Silver Fox, claro.
– Depois, alimentamo-nos. Vestimo-nos. Você pega seu blindado. Há certas coisas, que devem ser investigadas antes do cair da noite. Temos pouco tempo Trevanian. Tic-tac.

Raposas são uns bichos traiçoeiros, raposas, são péssimas esposas. Ótimas espiãs, guerreiras oportunistas, velozes. Inigualáveis na arte da sedução e do sexo. Espertas, muito espertas. Nem preciso dizer que meu banho, foi maravilhoso.

O que são eles, de onde eles vem, são humanos, máquinas, como defini-los? Não sei; ainda investigo quando tenho tempo. Os poucos que conheci, eram agentes poderosos; sob comando de uma força maior por mim desconhecida. Nunca quis, nem quero conhece-los. Eles vieram a mim. Me encontraram, me enquadraram; assinaram contrato comigo. Sou prestador de serviços. Gosto de acreditar que sou independente.

Sou o detetive deles e, apesar de ter investigado suas origens, analisado suas atitudes; não consegui avançar um passo em uma direção razoável, que possibilite ao menos; estabelecer um ponto de vista lógico que me permita, entender de certa forma seus atos. Preciso procurar e pensar por outros ângulos um dia, acho.

Forças, cruzes, fórceps, brigas, batalhas, guerras, intrigas, magia branca, magia negra, monstros, aberrações, loucura, escândalos e sangue; muito sangue mesmo.
Que posso fazer? Eu apenas investigo; sou só o chofer. A mula, que carrega Raposa Prata nas costas. Dou graças por isto, as coisas já são deveras complicadas do jeito que estão.

Do alto Loft, descemos diretamente pro sub-solo, garagens. Num canto mergulhado na penumbra; blindado nos aguardava. Um Explorer preto fosco totalmente à prova de balas, morteiros e fogo. Um carro digno de guerrilheiro urbano. Ao abrir as portas Explorer, emitiu um chiado indicando a mudança de pressão do seu interior para o exterior. Computadores e GPS iniciaram seus serviços.
– Bom dia Trevanian, Sula, minha agente que estava naquele momento, no escritório da empresa, me cumprimentava através do sistema de áudio do carro. Meu humor estava péssimo. Pelo vidro-monitor do carro; podia vê-la. Esbelta, jovem, sorriso branco, óculos e cabelos negros. Ao fundo podia ver minha equipe, andando de um lado pro outro atarefada resolvendo outros problemas. Sabia que estavam disfarçando. Preocupados comigo. Espero deixá-los em paz. Não quero meter meus meninos nisto. Caso alguém tenha que morrer, escolherei um veterano.

Conferi armamento sob os bancos e, dentro do painel frontal do veículo. Polarizei os vidros do blindado. Aqueci o motor. Liguei o ar-condicionado. Liguei o som, deixei acontecer. Raposa de Prata e eu, dentro do Explorer; subimos a rampa de saída da garagem e, ganhamos as ruas da cidade.
– Iniciando monitoramento Trevanian – Avisou-me Sula.
– Não desgruda de mim, Sula Valentine, se não rua.
– Pra onde? – Perguntei a Raposa Prateada.
– Confere GPS, subúrbios, cemitério Jequitinhonha. Apura!

Nada contra os antigos. Respeito suas velhas tecnologias do passado; mas, andar pelas cidades hoje em dia é impressionante. Prédios altíssimos, avenidas largas intermináveis. Hoje em dia, tudo é Babel. Tudo de proporções Babilônicas. Jardins suspensos, jardins subterrâneos, jardins de areia e jardins de pedra. A montante, a jusante tudo asfalto, tudo cidade, tudo Babel. Do rés do chão, edifícios ambicionam rasgar o céu. Edifícios invertidos, desejam o contrário. Querem aconchegar-se no núcleo da terra. Muitos sub-níveis existem enraizados no chão. Muitas pessoas, optam pelas cidades subterrâneas. Nascem, crescem e morrem sem ver a luz do dia em um mundo; onde cada dia pode durar até setenta e duas horas. Eles gostam assim, vai saber por quê...

Cemitério Jequitinhonha é uma enormidade. Para chegar até ele, já no final do percurso, devemos cruzar cinqüenta quilômetros de invasão. Uma da milhares de pré-favelas, que compõe a base da nossa sociedade. Elas existem, sempre existiram e pelo que sei; existirão para sempre. Não podemos viver sem elas. Mas elas, podem viver sem nós. Precariamente; mas podem.
No meio dela, demos com um protesto feito pela coletividade. Os moradores, haviam achado um novo veio aqüífero, o governo queria primeiro tomar posse do empreendimento, depois privatizar. Estávamos no meio da guerra e nem eram nove da manhã ainda.
Desviando dos protestos, junto com muitos outros carros, percorremos as avenidas da favela.

Sula:
– Trevanian, daí até cinco kilômetros ao redor; estamos captando indícios de batalha. Batalha em todo entorno. Não passarás!
Parei em um bar feito de material reciclado, próximo a um restaurante transgênico.
– Vamos nos informar a respeito dos túneis – falei.
Ela me acompanhou. Travei e eletrizei o blindado. Encostei-me ao balcão do bar, coloquei meu revolver Eagle sobre o balcão.
– Genebra! – falei pro dono da birosca. Um negro grande careca e barrigudo, barbeado, pele marcada por combates.
Ele me olhou sem medo, sorriu e disse:
– Genebra faz bem pras tripas.
– É por isto que vou tomar. Com esta zona acontecendo aqui, to quase pra encher as calças. Ele riu. Raposa Prata, olhava o cara fixamente que nem lhe prestou atenção. Apos ser servido, tirei um maço grosso de dinheiro da cueca. Preciso cruzar esta merda agora. Túneis.
– Pelo fone de ouvido, Sula comunicou-me:
– A rede de metrô informal passa embaixo do ponto onde você se encontra agora. O nome deste negão é Randal, chefe de brigada, ativo. Você pode negociar com ele.
– Pra onde chefia?
– Randal, isto não é da sua conta, quer vender dois passes, ou quer levar umas boas porradas?
– Agente Trevanian, vou vender, mas não se engane aqui mando eu e, você tá na mira.
– Está mesmo Trevanian – concordou Raposa Prata. – No prédio da rua em frente, snipers acenam pra gente.

O negão falou:
– Não to fazendo isto por você Trevanian e sim pra esta coisa aí, quero ela longe de nós. Assim que entraram no bar, foram escaneados, filmados e investigados. Assim como você mesmo fez. Não há registros desta criatura ao seu lado, nos últimos cinqüenta anos. Não sei o que é nem quero saber. Mas quero saber aonde vão.
– Jequitinhonha Gates – Raposa Prata informa.
O negro, dá um sorriso triste e ao mesmo tempo irônico.
– Ê coisa boa. Sumam. Paguem seus ingressos agora, desçam as escadas á direita. Há um carro esperando por vocês.
Antes de descer as escadas disse a ele:
– Guarda meu carro?
Guardo. Mas acho que você não volta mais. Se não voltar é meu.
– Se eu não voltar, assim que eu morrer ele explode, danificando tudo em um raio de quinze metros.
Randal, nos brindou novamente com outro sorriso irônico-triste.
– Você que pensa Trevanian. Você que pensa.

No subsolo, o carro chefe do trem de metrô aguardava. Um espaço úmido, lavrado na pedra e na terra, estruturado por entre cabos elétricos, vigas de aço e concreto armado sem propaganda. As portas abriram-se. O condutor, um velho albino sardento, perguntou:
– Pra onde?
– Jequitinhonha Gates.
– Posso deixa-los a oitocentos metros dele.
– Ta ótimo. Pica a mula velhinho.
Sumimos naquela escuridão.

Já dentro do cemitério, avistamos um grande mausoléu branco perdido na névoa seca. De longe podíamos escutar o rugido de uma batalha urbana; que após cruzarmos os portões de Jequitinhonha, deixou de ter importância. O céu azul sobre nós. O sol, inclemente. Movimento. Embrenhamo-nos por entre lápides, jazigos, anjos de pedra, saudades e flores mortas. Raposa Prata ia à frente. Mais adiante, cruzamos uma pequena ponte. No meio dela, havia uma sombra. A sombra consolidou-se; formando um monstro feito de cadáveres. Vários troncos emendados uns aos outros, constituíam seu tórax. Varias pernas plasmadas umas às outras, eram suas duas pernas. Tinha seis pares de olhos e três bocas que falaram ao mesmo tempo:
– Os serviços já foram iniciados. Não há mais nada a fazer. Vão! Embora! Agora! – Rugiu o monstro.
Raposa Prata sorriu de leve. Da carne de seus pulsos, retirou duas finas adagas afiadas e reluzentes.
O morto-vivo reluziu, cheio de poder sobrenatural. Antes que Raposa Prata desse combate, saquei meu Eagle e explodi a cabeça dele, descarregando a pistola. Uma gosma amarelo catarro e pedaços de carne cinzenta nos perfumou.
Ela me deu um olhar frustrado. Estava uma fera, queria lutar. Fingi que nem notava, recarregando minha arma. Cruzamos a ponte, seguimos em frente.
– Pra onde? – perguntei.
– Calma, estou sentindo. – me disse ela.
Foi quando atingiram-me no peito violentamente. Um tirambaço. Voei uns cinco metros para trás, arrebentando várias lápides. Raposa Prata, abaixou-se correndo em minha direção desviando-se habilmente dos outros tiros. Acordei da parada cardíaca, graças a Sula que acionou o desfibrilador implantado em meu peito. Um dos vários coletes a prova de bala que uso conseguiu evitar o pior. O defletor falhou mas amorteceu, o constritor falhou mas amorteceu, a boa e velha placa de titânio salvou-me.

– Chefe? Chefe? – Sula gritava em meus ouvidos – Não pude ver o que havia no mausoléu por causa da névoa.
– Eu sei, eu sei. Quem te treinou fui eu. Merdas acontecem. A coisa é assim mesmo e, qualquer coisa é a mesma coisa. Este é o meu trabalho. Manda um helicóptero pra cá agora, com o Curtis e o Blow.
– Vinte e cinco minutos previstos para a chegada. Eles já estavam preparados. Posso ir também? – Pediu Sula, com brilho assassino no olhar.
– Nunca precisou Sula. Fica na creche aí e vai treinando, que um dia tua hora chega. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e, isto aqui; é coisa de velho.

Lendo os olhos da Raposa Prateada, entendi que não podíamos esperar, o tempo urgia. Colocamo-nos em movimento, sob fogo cerrado. Minha parceira, possuía um tubo que aflorava de sua coluna cervical. Parecia vir da base do crânio e descia fundido às vértebras. O fim dele, no meio das costas, possuía abertura retangular de três dedos de largura por um de altura, já tinha notado isto no banho e, apesar de muito ter matutado a respeito da sua função durante o percurso até Jequitinhonha; não conseguia imaginar para quê servia. De seu manto, ela retirou algo parecido com um dominó comprido. Amassou o objeto no meio e, introduziu neste dito orifício no meio das costas. Começou a vibrar e brilhar. Segurou-me pela cintura e pôs-se a correr a uma velocidade vertiginosa. Rompia paredes de capelas, arrebentava túmulos, lápides e previa os tiros antes de serem disparados. Chegando perto do mausoléu ela gritou pra mim:
– Encolhe as pernas junta os cotovelos!
Obedeci, num medo cego e respeitoso, como uma criança reagiria a um comando materno urgente. Aí, ela lançou-me pelos ares. Vinte metros de altura e subindo. No ar, saquei o Eagle e comecei a atirar. Acertei dois snipers, um no ombro arrancando o braço, outro na cintura amputando uma perna. Depois, caí rolando pela cobertura do mausoléu, bati com a cabeça numa parede. Apaguei.

Acordei com a língua mordida, dores na cabeça e peito. Sentia cheiro de sangue, a laje do mausoléu era uma carnificina só. Quatorze soldados mortos. Despedaçados. Raposa Prateada dava tapinhas suaves no meu rosto. Seu corpo imaculado como no chuveiro. Soprava com seus lábios, flores silvestres em minha face.
– Levanta Trevanian, a brincadeira ainda nem começou.
Carreguei novamente o Eagle e o guardei. Peguei agora minha Uzi em uma mão e meu rifle cano duplo serrado na outra.
– Agora vamos entrar no mausoléu né? – perguntei.
– Quem dera, disse ela. Emitindo ruídos parecidos com conecção discada e vibrou. Com ela vibrou o mundo também. Aí, foi foda. O véu do mundo caiu eu acho. Ou dois mundos diferentes misturaram-se. O mausoléu era agora base de outra estrutura. Arquitetura feita por um Gaudí ensandecido. Era como a cripta da colônia Güell, mas feita sob encomenda para o capeta. Um prédio em formato ondulado. Uma distorção negra, cinza, roxa rodeada por árvores apodrecidas, sem um único ângulo reto. Uma larga porta de sua fachada escancarou-se. Dela, jorrou horda de demónios imundos; com olhos vermelhos e verdes. Velozes como beija-flores. Criaturas espinhudas, com navalhas nas mãos ao invés de dedos. Mas, não tão rápidos quanto minha Uzi. O pau comeu. Raposa de Prata, os abatia impiedosamente em ritmo constante, como se fosse uma ceifadeira. Uma máquina de morte. Sempre me dando tempo para recarregar. Protegendo minhas costas pra eu reload. Acabamos com eles rapidamente. Entramos na cripta. Como tudo era fácil ao lado dela. Ela foi desarmando armadilhas, explodindo sensores com a força da mente, destruindo enormes demónios de fogo do mesmo modo que abatia monstros pequenos e ardilosos. A frente de um trono, sentado nos degraus, nas profundezas da cripta, nos aguardava um ser extremamente velho. Em seus braços ele segurava uma caixa. A caixa estava entre aberta o que havia em seu interior, parecia ser uma estrela. Brilhava como se fosse uma estrela pelo menos. Tinha o formato tridimensional de uma estrela de cinco pontas, pelo que podia perceber.
Raposa Prateada olhou para mim. Olhei pro chão.
– Mata ele Trevanian – ordenou ela.
– Não.
– Por quê?
– Ele lembra meu avô. – Menti.
– E se ele não for o que você imagina?
– Não tô nem aí. Tem coisas que eu não faço. Procure um advogado.
Silver Fox deu um riso selvagem e, sacou sabres que brotaram lateralmente de suas longas coxas. Foi repelida voando longe pelos ares, ao entrar no perímetro de um metro ao redor do ser antigo. Praguejando como um marinheiro ralé, levantou-se desconjuntada. Caminhou ao redor do ancião, observando. Aproximou-se devagar. Ajoelhou-se à sua frente, empunhando os sabres. Mostrou-os ao velho. Apontou eles direto pro coração dele e, centímetro a centímetro; foi vencendo muito lentamente aquele campo de força. Olhava para a velha criatura, com malícia determinada. Leve sorriso irônico nos lábios. Quando a lâmina estava prestes a tocar a pele do ser, ele explodiu numa bola de energias e chamas. Atirada contra a parede novamente, Silver Fox fechou a guarda em xis, enquanto o ancião atacava com velocidade alucinante. Defendeu-se de socos frontais, jabs de direita, esquerda e socos cruzados, mas não conseguia evitar todos. Sangrava pelo nariz e boca. Raposa de Prata cometeu o erro de dar um chute lateral com a guarda muito alta, como recompensa; levou um gancho fortíssimo nas costelas. Ouvi som de osso quebrando. Enquanto o velhinho a enchia de pancada, ia mudando. Um rabo começou a brotar, escamas surgiram e, vi que Silver Fox estava lutando contra uma criatura parecida com um grande lagarto leão emplumado, bípede. As adagas de Raposa de Prata agora despontavam ameaçadoras de seus cotovelos e dos joelhos os sabres trabalhavam da mesma forma. A criatura deu um giro, querendo apanha-la com o rabo, Silver Fox o acompanhou neste giro rápido ficando em suas costas. Por esta mostra de excelência inegável, admirei Raposa Prateada. O mais astuto; não o mais forte venceu a parada. Nas costas do lagarto ela deu um mortal para trás, usando os sabres do joelho para rasgar profundamente couro, carne, artérias e osso das costas daquele réptil. Depois, caindo sobre os dois pés pulou nas costas rasgadas da criatura e com os cotovelos de adaga afundou dezenas de vezes as lâminas na base do pescoço do lagarto leão. Ele todo estourado, ajoelhou-se no chão irregular de aparência orgânica e sussurrou um mantra. Começou a rezar e assim, ia recompondo-se rapidamente. Eu que já não aguentava mais aquela parada; cheguei bem pertinho dele com a Uzi e, apontando ela pra cabeça do bichão; que arregalou os olhos e vidrou eles em mim abrindo em copas a juba de couro. Transformei, toda aquela feiura em papinha.
Silver Fox, ajoelhou-se recolhendo a caixa com a estrela dentro e disse:

– Vamos embora Trevanian, missão cumprida.

Em suas mãos, a caixa foi reduzindo-se de tamanho, até caber na metade da palma. Colocou a caixa na boca, engolindo-a sem mastigar.
O mundo mudou novamente, pude ver Curtis e Blow. Estavam no helicóptero bem acima de nós. Olhavam para mim embasbacados. Sula que se virasse pra pegar o blindado. Eu ia pra casa era voando.
Após um banho, alguns antidepressivos, algumas pílulas aceleradoras, muito analgésico, várias doses de escocês e alguns cigarros Continental; eu e Silver Fox estávamos prontos pra outra.

Novamente noite alta. Ela nua no sofá, enrolada em seu manto negro como ébano olhava-me calmamente. Tragou o cigarro com suavidade e disse:
– Levarei sua semente para mim Trevanian.
Dei de ombros. Tomei uma golada de escocês e disse:
– Tanto faz, fiz vasectomia anos atrás pra loucas não aproveitarem-se da minha pessoa.
Ela olhou-me nos olhos e sorriu sem nada dizer. Eu mentia e ela sabia disto de alguma forma.
– Vamos, leve-me ao ponto zero.
– Que ponto zero porra? Quero é dormir. Quero é um boquete. Sai pra lá.
Ele olhou-me novamente. Apontou o dedo indicador pra mim; depois passou ele pela própria garganta. De orelha à orelha. Apontou pro meio das minhas pernas, fechando a mão em punho cerrado que estralou devido à força de seus músculos. Estremecí por dentro.

– Peraê rapidinho, que vou por uma cueca e vestir qualquer coisa.

Estava novamente carregando-a nas costas embrulhada nua em seu manto madrugada afora. Era uma linda e profunda noite estrelada sem lua. Em frente à vitrine do brechó do terno Zoot, atrevi-me a olhar para cima desta vez quando, aquela garra bio-cibernética cravou-se fortemente no orifício das costas de Silver Fox, minha Raposa Prateada e, ela foi erguida violentamente pelo braço monstruoso. Recebeu um choque horroroso, seu corpo contorceu-se com a descarga. Ela de mim não tirava os olhos. Até que eles embaçaram e ela, parecendo um brinquedo sem baterias apagou. Abaixou à cabeça, seus olhos fecharam-se. Seus cabelos cobriram o rosto. Ela sumia no vórtex. Braços e pernas pendiam moles no ar. Sua mão abriu-se num espasmo e o manto negro, provavelmente seu único bem material, escorregando por entre os dedos foi flutuando no ar; até envolver-me num último abraço.

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