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segunda-feira, 18 de março de 2013

Status Quo

Por: gu1le

Insetos enxameavam pela noite. Havia uma luta encarniçada lá fora. Nos ares acontecia guerra. Corriqueira, rotineira. Morcegos negros devoravam suas vítimas, insetos. Tais morcegos, ao pendurarem-se nos galhos das árvores do jardim selvagem centenário, degustando os tais insetos; eram atacados por outros insetos estes, predadores noturnos. Grandes centopéias, aranhas caranguejeiras que também por sua vez, eram trucidadas por répteis. Lagartos, iguanas que eram mastigados por carcajús e assim por diante, até chegar ao povo que se aglomerava à frente de seu amplo portão de ferro batido coberto de hera. Não o estavam forçando ainda, mas já estavam visivelmente inquietos.
Eles tinham fogo, foices, martelos, facas, forcados e outras armas imaginava. Das profundezas do chateau, ele via parcialmente, sentia as vibrações profundamente e ouvia perfeitamente a balburdia criada pela multidão. Farejava, na inércia daquela plebe, semente abrasiva da fúria. Linchamento. Tudo isto, absorvido pelo seu frágil corpo idoso encarquilhado. Somando estes fenômenos à resquícios de sua experiência de vida gravados na memória, soube que as horas de paz estavam contadas. Resumindo; isto era o que lhe advertia seu credo.
Caminhando com lentidão, ele era o peso triste dos anos. Anos de solidão, isolamento, reclusão e silêncio. Era todo rugas, manchas de pele e cabelos brancos. Apesar de extremamente idoso, apesar de nem ser capaz de lembrar-se quantos invernos havia vencido, não sofria de alopecia e vivia em uma ruína extremamente asseada para os padrões da época. Era o que acreditava. Ruína mantida há tempos apenas por ele mesmo pois, seu único serviçal e amigo fora assassinado em uma madrugada vazia.
Sim, Randy estava morto. Provavelmente abatido por membros da mesma turba que o ofendia do lado de fora da propriedade. A luz do luar começava a infiltrar-se pelas janelas abertas nas laterais do chateau. Assustou-se com ela, chocando o seu cajado, contra um aparador de marfim. O candelabro de seis velas que repousava sobre o aparador, oscilou e, como mágica acendeu-se começando a cair. Com o reflexo de um gato apanhou-o um milésimo de segundo antes de atingir o chão.
"Isto prejudica o meu status quo." - pensou ele - "as coisas deviam ter permanecido do jeito que estavam. Agora estamos todos correndo perigo."
Uma súbita mudança emocional o encheu primeiro de amargura.
"Eles violam meus direitos." - ranzinza, murmurou baixinho.
Lá fora, com a chegada de arrivistas, começam os primeiros gritos. A multidão protesta.
"Ameaçam minha integridade física." - gemeu desamparado. Limbo.
Agora uma mudança psicológica, como uma onda, varre de si o que era amargo e triste, inundando-o de piedade e desespero.
Observou sombra viva nas paredes iluminadas pelos raios de luar. Dançavam, acenavam para ele divertidas, obscenas. Voltou seu olhar para a janela alta. Era apenas a antiga ameixeira plantada por Beatrix que brincava com ele. Seus galhos desfolhados dançavam ao luar. Há quanto tempo não a via? Há quantos anos Bea partiu? Eco dos tempos. Vaga lembrança do cheiro de seus cabelos, do calor de suas mãos, o chicoteou sem piedade.
Partiu? - Uma voz sussurrou em sua mente - Ou foi levada pelo mundo? - Hmmm? Meu velho...
"Estou abandonado."- admitiu fracamente para si mesmo. - É preciso recomeçar. Todo final é nada mais nada menos, que um novo começo.
Sentindo espasmos em suas vísceras dobrou-se ao meio enquanto a lua iniciava um movimento para empoleirar-se no batente de uma das altas janelas do antigo chateau. Passa o momento. Apoiado em seu cajado, nota que sua visão antes turva; estava a clarear. Imerso na escuridão podia agora compreender cada polegada da grande biblioteca onde se encontrava. O piso antigo feito de pau-brasil, tatuado por riscos profundos, estantes ciclópicas cheias de livros e grãos de poeira flutuando, brincando nos raios de luar. Os arabescos minuciosos dos imponentes tapetes persas. Um brilho prata emitido por antiga armadura medieval e um machado de guerra cheio de dentes que parecia desafiá-lo pendurado no alto da lareira, onde brasas como que olhos vermelhos, furiosos o observavam.
Apesar de intuir que era nada ortodoxo, começou a rezar:
- Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis... Senhor sei que de mim esqueceste. Sei que não sou digno de ti. Mas para mim tu és meu castelo alto... - Uma contração violenta assaltou os músculos de suas costas e ele soltou o cajado com um berro, arqueando-se para trás como uma ponte. Como um possuído.
A lua estava concentrada no topo da janela. Ah sim, claro... era lua cheia.
Antes de ser completamente tomado pelo lobisomem, conseguiu distinguir o som da queda do portão. Seu portão encantado. O círculo fora rompido. Portão e muros antes, intransponíveis para a coisa que era agora, não mais existiam. Com os olhos praticamente saltando das órbitas, uivou um lamento anunciando a queda da única barreira que protegia os vândalos dele, a besta-fera. Um rosnado surgiu do fundo de sua garganta e ele concluiu sua oração:
- Senhor, guia minhas mão para a guerra... pois destes teus filhos... farei meu mingau.
Seus trajes de nobre, antigos e antiquados foram feitos em pedaços, numa nuvem de poeira, pela massa corporal musculosa da criatura que brotava de dentro dele. Das profundezas da biblioteca que incendiou, começou a caminhar em direção dos sons e das luzes que vinham lá de fora com desenvoltura. Sua silhueta poderosa contornada pelas chamas que agora consumiam seu ninho tinha aspecto extraordinário. Era agora, uma cria de pesadelos. Enorme, trezentos kilos. Quase três metros de altura. Sua pelagem ruiva, seu focinho longo e cravejado de presas pontiagudas, lembravam dentes de tubarão. Suas orelhas altas e afiladas como o Deus Anúbis. Olhos de cão azul deitavam rastros de luz enquanto movimentava-se. Braços maciços como carvalhos. Longos dedos resistentes, habilidosos letais. Suas pernas poderosas e desproporcionalmente mais longas que o tórax eram de lobo, suas patas eram uma mistura entre o humano e o lupino. Arrastava o monumental machado de guerra de dois fios - que se chamava Libra - a seu lado mas ligeiramente um pouco atrás de si pelo chão. O piso profundamente magoado por suas garras, ia sendo lambido pelo fogo. Não tinha mais ninguém. Não tinha mais para onde voltar. Estava solto no mundo. Lentamente a grande porta da frente do chateau, aberta por fantasmas, permite que a multidão veja o que se aproxima. Desespero.


Fim



Valeu Day! Espero que goste. Obs: O conceito de "status quo" origina-se do termo diplomático "in statu quo ante bellum", que significa "no estado (em que se estava) antes da guerra".[1] Na realidade, a expressão não define necessariamente um mau estado, e sim o estado atual das coisas. Em uma citação, por exemplo, "Considerando o status quo...", considera-se a situação atual.[1]

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